terça-feira, 28 de julho de 2009

já era hora – por João Lira


Finalmente venho aqui contar-lhes coisas boas, sem reclamar!

Até domingo estava de férias na casa de meus avós, uma das poucas férias com meu pai já que ele esteve sempre trabalhando e suas férias eram de uma semana, uma vez por ano. Agora ficou diferente, ao voltarmos da Venezuela, país que moramos por causa do trabalho do meu pai, ele ficou desempregado e por enquanto trabalha por conta própria.


Está sendo muito difícil pois o salário dele não é garantido no fim do mês, porém de outra perspectiva, vemos que ganhamos muito em questão de valores, princípios e atitudes. Aprendemos o verdadeiro valor do dinheiro e do sacrifício para consegui-lo, aprendemos a consumir conscientemente, descobrimos realmente o que é necessário ou supérfluo, passamos a viver com menos da metade do que precisávamos antes. Penamos no começo, mas aprendemos a ser felizes.


Não é só porque conseguimos a felicidade (ela estando dentro de cada um basta encontrá-la) que paramos no tempo, pelo contrário, como dito antes ganhamos muito e agora usamos isso para nosso cotidiano. Descobrimos um novo mundo e por incrível que pareça, não foi o dinheiro que proporcionou isso para nós, foi a falta dele.


Minha família está muito unida agora. Essa falência nos juntou numa casa menor, televisão menor, panela menor, mas criamos um amor maior. Embora unidos não perdemos a noção de quanto vale um Real, sabemos que ainda precisamos de dinheiro para supermercado e outras coisas, ainda mais com uma família grande assim: pai, mãe e quatro filhos.


E felizmente isso vai mudar. Não quer dizer que voltaremos a torrar dinheiro e comprar qualquer coisa que virmos pela frente, mas sim que meu pai voltará a ter um emprego, nós continuaremos felizes e dessa vez economizando.


Um beijo do João

sábado, 18 de julho de 2009

libertas que será também - por Visconde de Albuquerque

Rainha, meu grande bem,

Por que cargas d´água houveste tu de mencionar bebericações e elucubrações nossas em fins de tarde? Pois a decisão está tomada em caráter irreversível. Mudo-me em breve para qualquer outro CEP não iniciado por 2 (a dúvida recai ainda entre Patos de Minas e Varre-e-Sai). Só assim, restar-me-ão esperanças de sentar-me diante de ti novamente. De meu observatório, bem te vejo a borboletear por aí com as garotas desta esquina, habitantes de municípios outros. Guilhermina, Guilhermina...por ventura desconheces que ciúme de homem é coisa infinitamente mais séria que o mesmíssimo sentimento na mulher? Se sabes, finges ignorar, perdendo levianamente a noção do perigo. Um homem ciumento não responde por seus atos.

Martha Medeiros registra que o conjunto formado por duas amigas, uma tarde livre e litros de vinho branco é o paraíso. Constituiria muita petulância de minha parte afirmar que dois amigos, uma tarde livre e litros do que quer que seja possam igualmente sê-lo?

No tempo em que nos encontrávamos amiúde, aquele ente atormentado e claudicante que sou foi cedendo, pouco a pouco, a um projeto de cavalheiro mais ajustado, com algum conceito de juízo. Quase um ser humano normal, apto a viver em sociedade. Mas, qual! A distância que teima em afastar nosotros já se faz sentir em toda a sua carga dramática. Com celeridade, retorno à deplorável esfera habitual de rabugices e resmungos. Bufo pelos cantos em lapsos de impaciência, rosno para equivocadas idéias de entretenimento, inquietam-me as conversas. Grupo de mais de 2 aflige-me. E, confesso-te, exaurem-me as próprias idiossincrasias.

Observo os casais a minha volta e entedio-me. Nunca noto uma correlação de forças, as individualidades em sua inteireza, com seus interesses pessoais, tratando de polir seus universos interiores, lapidar suas buscas e investigações. Rendo-me, por incontestável, à idéia de que sou francamente um tipo anômalo, em que pese não ser um celibatário. Mas, preciso ficar só, caminhar na praia só. Preciso ler, escrever. Preciso de silêncios. Ao ler Mutações, de Liv Ullmann, em era mesozóica, meu cérebro iluminou-se. Dizia a estupenda atriz que Bergman, com quem estava então casada, era capaz de passar dias e dias enfurnado em seu estúdio sem aparecer, digamos, na casa em si (claro, moravam em castelo norueguês, se não me falha). Ou seja, para ela. Não lembro agora se o tom era de reclamação ou de simples constatação.

Na hora, pensei: êi, este sou eu! Mas como? Ele, um senhor nórdico, escandinavo, cineasta consagrado. Eu, um jovenzinho latino, brasileiro, estudante. Onde tal identificação? O fato é que ambos formaram uma dupla arrepiante no mundo das telas. Aquele ser, aquele diretor, que tanto precisava de isolamento e introspecção, inscreveu com a própria mulher uma das mais belas páginas no cinema mundial, em filmes impregnados da mais pura humanidade, sensibilidade, delicadeza, em sua espiral profunda, torta e universal. Que casal, hein?

Por analogia, vem-me de imediato a palavra "companheirismo". O que é mais legal em tua relação com fulano (a)? Ninguém titubeia: Ah, o "companheirismo". Esse conceito tão lindo dentro da aventura humana é de tal ordem desbaratado que se aplica a qualquer situação. Companheirismo, na débil - e muito provavelmente equivocada - definição albuquerquiana, nada mais é do que o que se faz movido pelo coração. Nunca pela obrigação, tão somente pelo comodismo de querer livrar-se de um aborrecimento. Tão delicada a linha que separa a entrega da dependência.

Quem de vocês conhece um casal realmente bacana, investido na realização de suas trajetórias individuais, pessoais e profissionais, em que o sentido do acasalamento seja única e fundamentalmente o querer ficar junto? Em que um não seja o tirano, o algoz do outro? O usurpador de suas energias? O desestruturador de seus desejos mais profundos? O desorganizador de sua beleza íntima? A bengala? O pijama? O chinelo? Vejo parentes, irmãos, mães e filhos, qualquer coisa, menos casais, numa espécie de desbalanceamento que dói.

Conheceis, por acaso, um casal que diga: o que nos prende é a nossa liberdade? ("E no que diz respeito à liberdade, nunca é uma palavra que não existe"). Pois façam-me a fineza de indicar os nomes de seus integrantes. Faz-se mister entrevistá-los. Entrarão na pauta que preparo sobre o mico leão dourado.

Céus, quanta radicalidade e intolerância no que escrevo. Oh, amada, Guilhermina, avisei-te sobre as sequelas de tua ausência em meus dias. É nisso que dá. E como é lindo teu texto. Recorto: "Isso acontece de tal forma que é necessário que façamos a travessia do medo". Hum...Tem vinho branco aí?

Te abraço com tanto calor, querida.

PS 1 - Duda, renovas-me, meu grande amor sincero.
PS 2 - Só mesmo ouvindo "Autonomia", de Cartola.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

nuvens e beija-flores – por Nine

Pensamentos como nuvens correndo no céu, mudando de forma e lugar, me ocupam a mente. Vão da tristeza e solidão do vampiro do klaus Kinski em Nosferatu, que um comentário do Marcelo Coelho no blog dele me fez lembrar, até a: tenho horror desses calores e frios que se alternam, graças a menopower. Logo em seguida, como cabritos, pulam para uma imagem do livro "A última colheita", de John Grisham, o neto e avo na velha pickup na nacional 135. E esse passeio mental me leva a: quando será que estarei num carro, com um homem, numa estrada, escutando música, olhando a paisagem e, às vezes, conversando e ou cantando juntos, como fazia com o meu ex? Será que farei isso ainda alguma vez? Gostava tanto de pegar estradas dentro e fora do Brasil com ele... Sinto falta da intimidade que nos tínhamos e que não sei se terei de novo com outro...

Ai lá vai a lebre do meu pensamento para minha prima querida e preferida, que está com colesterol alto, gastrite, stress causado por vários motivos, mas principalmente por um chefe sádico e o ocaso de um casamento de mais de 25 anos que ela quer terminar sem brigas, sem stress... ela também acredita no poder dos cristais, mas eu a amo mesmo assim! Olho distraída para meus lençóis, escrevendo na cama, e lembro da filha do meio me perguntando ontem onde comprar lençóis de algodão bons, bonitos e baratos, penso no post do blog "ela fala e sai andando" onde a Elisa de lá, conta que a mãe dela pensa que ela é o Google. Aqui em casa é o contrario, meus filhos é que pensam que eu sou...

Mãe, onde compro lençóis assim assado?
Vai na 25.
Como tiro mancha de vinho tinto?
Derrame vinho branco em cima, desaparece na hora!
Como reavivo couro em sapatos e bolsas?
Passe casca de banana, deixe secar bem e escove, ficam como novos!
Mármore sem vida?
Limão com bastante sal, enxaguar em seguida!

Sou uma fonte de sabedoria doméstica e vida prática para eles, queria ter uma fonte de sabedoria emocional... E lá vamos nós, me, myself and I, na minha mente jaguar preto pensando em como meu amigo L., que eu encontrei ontem numa cafeteria, se deixou envolver pela filhagrávidamaridofilhopequeno, que voltou dos EUA direto para casa dele, perturbando a vida dele e sem data de saída, quando eles tem um apt em SP que agora está pequeno para a família dela? E o L. com isso? Me contou que não sabe o que fazer, que esta estressado com choro de criança pequena, com coisas espalhadas pela casa, televisão ligada o dia inteiro nos coelhinhos tolinhos, Bob Esponja e o insuportável dinossauro roxo! Diga NÃO L.! Entra esse outro pensamento intrometido e arrogante, não percebendo que muitas pessoas tem dificuldade de dizer NAO! é só abrir a boca e articular N-Ã-O! Mas não é assim para todo mundo, sua insensível! Lembro da minha amiga R. que diz para amigos e amigas que os amam, que os adoram, mas não diz para os amores. O amor diz: Neném estou com saudades! E ela: é Neném? Não sei como o "neném" não sapateia e se joga no chão! Falo facilmente eu te amo, estou com saudades, me desculpe, me perdoe. Mas estou só, ela não! Será que eu não tenho uma comporta que deveria ter? Sou esquisita, estranha em não conter meus pensamentos, meus sentimentos? Dentro da minha cabeça deveria existir um nano-censor? Ele ficaria sentadinho atrás de uma nano-mesinha de camisa estilo mórmon, de gravata preta, com óculos de aros pretos cerceando tudo... Coitadinho, ia ter um trabalhão!! Ah, queria saber desenhar o nano-censor chamado Orestes que viveria dentro da minha cabeça que só comeria enlatados e miojo, uma vida tão monótona de chorar! Toda vida de censor deve ser de chorar...

Pego o superelevador que tem na minha cabeça e vou até o andar: Bispo do Rosário. Ele escutava vozes que o mandavam fazer as artes dele. Bordados lindíssimos, certas roupas e estandartes bordados por ele parecem medievais. Ele parecia ter fixações por nomes. Esquizofrênicos falam com Deus, Jesus, marcam encontro com divindades e demônios na sala ao lado. O Sr Bispo, como ele gostava de ser chamado, nos tempos mais heavy metal da Juliano Moreira, pedia aos enfermeiros para o trancafiarem que ele ia "se transformar”. Era quando as vozes iam chegar... Mau passant também previu a própria loucura. Numa carta a um amigo ele escreveu contando que iria se casar, não porque estivesse apaixonado, mas para não ficar só. Estava percebendo a loucura chegar e achou que assim a exorcizaria. Ledo engano, a loucura chegou antes do casamento. Solidão apavora, como diz uma outra canção. O Sr. Bispo do Rosário disse que os loucos são como os beija flores, batem asas mas não saem do lugar e vivem a 20 metros do chão... Meus pensamentos deram uma freada brusca, ai comecei a chorar...

bjs Minha Rainha!
Nine de Azevedo

segunda-feira, 13 de julho de 2009

o amor quando acontece

Meu Visconde, meu amigo,

Quanto tempo! Que saudade!

O espaço que minha memória guarda para aqueles dias em que bebericávamos à tardinha enquanto massageávamos nossos egos magoados, ou ainda, acariciávamos os corpos feridos e a almas ainda ardendo, sem destino nem direção... Naquele espaço ergui uma estátua, uma homenagem póstuma aos que ocuparam nossas vidas mais, e talvez melhor, do que nós mesmos...

Não és o primeiro a me dizer que há um valor para a vida que só conhece quem amou com toda a entrega, com sofreguidão, com desespero, ainda que disfarçado, que contido por rédeas de bom senso e de boa educação. Não discuto isso. Fazê-lo seria tão somente um exercício de hipocrisia e, você sabe, meia verdade é uma mentira inteira. Não. Definitivamente, não tenho o que argumentar sobre essa coisa toda. Nem prescindir. Nem, ainda, que lamentar seu fim. Hoje, depois da passagem de tantos dias, de dores outras, e de vazios imensos, já posso ver que há lição na perda. (E que perda!) Assim, portanto, deve ser lição das grandes, das mais importantes, daquelas que não se pode passar sem, sob pena de estacionar a vida num meio-fio e ali esquecê-la como um indigente.

Vira e mexe, releio minhas cicatrizes e traduzo mais uma sílaba de seus hieróglifos. Algumas respostas devem ainda dormir lá como numa câmara mortuária se guardavam os pertences mais queridos que foram animados por aquele que ali jaz. Sim, é quase uma reverência, você deve estar pensando... Mórbido? Meu querido, nefasto seria deixar a vida esvair-se por ali, deitando-a no parapeito pra ver a banda passar.

Mas tudo isso são favas contadas. O que ressoa de sua última presença e palavras por esses lados é a idéia de que tais encontros, dotados desta intensidade amorosa, não se repetem. Francamente meu amigo! Não me venha com tal golpe de capoeira. Até parece aquela história de que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar! Crendice, meu caro, crendice. Estou cada vez mais convencida de que tal possibilidade amorosa, uma vez conhecida, nunca mais se faz por menos. Sua passagem ensina um estado de existência, uma forma de conexão no mundo, com o mundo. Isso acontece de tal forma que é necessário que façamos a travessia do medo.

Busca incessante. Eis um estado que se inaugura. Haverá como percorrê-lo sem medo? Não creio possível. E no reconhecimento de cada encontro, é de novo o medo quem comparece, desta vez pela consciência da perda inevitável. Mas não é isso mesmo: há como visitar a antecipação das pequenas mortes sem temor? Essa não é nossa condição humana, imposta pela finitude?

Será, meu querido, que a grande lição, esta tão difícil, está em aprender uma torção do olhar? Onde sempre nos pareceu que era o objeto do nosso amor o que dava sentido a tudo, a verdade que se escondia atrás dele era o próprio amor como modo de permanência? Amor que só pode ser pleno por ter sua Causa dirigida sempre ao outro e não às mesquinharias das nossas vontades, dos nossos domínios, dos nossos poderes?

Caminho nesta investigação. Às vezes, pareço avançar léguas e, no entanto, no dia seguinte, acordo aspirada pelo mesmo redemoinho, ansiando um corpo querido como se nele habitasse o segredo todo, a resposta inteira. Acaricia-me então o fato de que são necessárias poucas horas para que experimente o esvaecer desta urgência, deste me perder por recôncavos que não levam longe. Então apanho de volta meu amor e faço dele o meu altar, lugar da minha súplica, da minha devoção e da minha possibilidade.

Se lamento alguma coisa? Sim, o tempo em que deixei o amor em abandono, na cela dos condenados à prisão perpétua, como se fosse ele o algoz. Que tolice, quanta bobagem! Que desperdício o meu. Salve o ditado popular: antes tarde do que nunca. E no que diz respeito à liberdade, nunca é uma palavra que não existe.

Foi muito bom te ver. Até o próximo brinde,
Guilhermina

sábado, 4 de julho de 2009

talvez no tempo da delicadeza - por Visconde de Albuquerque

Venerável Rainha, minha amada,

Devo-lhe há muito umas linhas (em meu caso, sempre às milhares) sobre antiga postagem tua. Apud a casa em ruínas de nossa Nine, ocorreu-me tocar nesse que é um tema excessivamente abrasivo. Também eu amei loucamente, ao meu jeito. Punk, junk, quiçá. Gravitava em torno daquele turbilhão, tomando-o como a uma droga que, indômita, cancelava os mecanismos da razão. Não é possível alguém viver sob o mesmo teto que uma pessoa, dormir com ela todas as noites e, ainda assim, passar os dias atormentado com a sua falta, contando os minutos para vê-la. As horas não passavam, por não lograr eu ocupá-las com as prerrogativas da inteligência, anuladas sem dó nem piedade por um combustível que queimava, ardia, na fornalha em funcionamento non stop.

Quase não me reconheço agora, algum tempo depois, nessas descrições que mais parecem saídas de uma outra criatura, em cenário medieval. A não haver passado por tudo isso, e lendo este relato, o interpretaria, das duas, uma: ou falaríamos de alguém pertencente a outro século - à guisa do flagelo de Romeu e Julieta em Verona - ou a clamar cuidados especiais na esfera da psi. Ponto para esta última hipótese. Coisa, parece-me, de quem recobrou a consciência. Ou não. Ou nunca.

O fato é que a prosseguir a navegação naquela batida de procela, em ímpares condições de turbulência, os barcos não tardariam a espatifar-se contra as rochas, tal o descontrole da bússola. A excessiva tensão aplicada às cordas de nosso instrumento outro destino não poderia ter senão arrebentá-las. Explodi-las. Enxergava eu com limpidez a ação do implacável ácido desgastando precocemente a estrutura que intentávamos levantar. Mas o que era do miserável eixo real contra a fúria do epicentro do querer? Logo, este teu amigo, como não pensava, não existia. Ela me abraçava e tempo e espaço ficavam em suspensão. A trilha sonora que mais expressava tamanho terremoto vinha, para variar, de Francisco: "Quis saber o que é o desejo, de onde ele vem, fui até o centro da terra, e é mais além".

A paixão tem, por princípio, ser fugaz. Ela roga por finitude, pois, do contrário, o ser esgota-se, consome-se. Mas aquilo que não passava continuou a não passar enquanto estivemos casados e, durante um bom tempo depois, seguiu em sua imperturbável formatação de permanência. Ninguém suporta indefinidamente o governo autocrático de um estado de exceção. Não é da natureza humana. E a união se desfez. Dessa parte, é dispensável ocupar-me: conheces de cor e salteado os desdobramentos, pois foste luz para mim quando tudo era sombra - como esquecer? Os dias no escuro, as noites em claro, em arrastamento perturbador. Tudo se resumia à reunião de forças mínimas capazes de manter em funcionamento a máquina de escrever e de emitir sons. A garantir a sobrevivência. Por várias vezes, ela me procurou e só eu sei - ou melhor - nem eu sei de onde saía a voz para lhe dizer não. É que o processo de cura precisava ser iniciado a qual preço fosse. Impunha-se o freio de arrumação.

Mais tarde, as bençãos do tempo, tempo, tempo, tempo - sempre ele - proporcionaram a acomodação do terreno pós-dilúvio. E foi possível até ensaiar uma improvável volta. Exemplo os há de relacionamentos que findaram e foram retomados mais na frente. Acredito eu que em amores de intensidade mediana - o que quer que isso signifique -, seja ocorrência possível (conquanto achar que ninguém encerra um relacionamento que é bacana). Nós, todavia, fomos tudo, menos um meio termo, um mormaço, um deixa estar, um vir a ser. Para o bem e para o mal. O amor até pode levar, circunstancialmente, desaforo para casa. Mas nem sempre habita uma mansão. E que o universo nos proteja de seus bolorentos e inóspitos subsolos.

O massacrante trator da memória derrotou tal possibilidade de rearranjo. Seu rolo compressor esmagou o frágil broto que teimava em vingar. Seus gritos ensurdeceram a caixa craniana. Suas lágrimas afogaram a centrífuga do desejo. A escuridão apagou o brilho daquele diamante. Um cristal estilhaçado não volta a sua original - e exuberante - condição de peça inteiriça. As infinitesimais partículas espalhadas por todos os cantos não deixam.

Jamais saberei a porção adicional que deixei de ganhar. Mas o que ficou não é pouco, antes ao contrário: ela me deu tudo. Sei o que é uma entrega genuína e absoluta entre duas pessoas. Poucos podem dizer isso. Pois, assim, é com toda a gratidão à vida que declaro esse imensurável patrimônio, esse bem que nenhuma Receita Federal há de sequestrar. Como diz a grande filósofa Ana Carolina - que, a teu lado, amiga, foi uma íntima companhia na região insondável e insone por onde andei -, "há tantos que vivem sem viver um grande amor". É tesouro inalienável. Legado que não se corrompe. Não conheci encontro maior.

Disso tudo, o melhor é o viver, derrubando incansável nossas maiores certezas. E que nos obriga, permanentemente, à vigilância, à revisão, à renovação constante do que tínhamos como líquido e certo. Olhando para trás, nem há com o que me arrepender, posto que praticamente se dava como que uma privação de sentidos, uma fuga ou, quem sabe, um congestionamento, um tumulto deles, vai saber. Há um buraco, sim, por não ter dado à mulher que eu mais amei um certo tipo de realidade que ela tanto pediu. Ansiávamos de tal forma coisas um do outro que simplesmente não podíamos cumprir. Ou, pelo menos, não naquele momento.

Lembremos que paixão vem de pathos. Até hoje, me pergunto se amei loucamente, o que era amor e o que era loucura. Fomos extraordinariamente felizes. E infelizes na mesma proporção. Era o amor mais lindo do mundo. Mas acabou de forma feia, na vala comum dos amores, como se fora o mais banal deles. Às vezes, os extravios são necessários, sim. O que salva é que se trata de fenômeno irrepetível (amor que não se pede, amor que não se mede, não se repete). Portanto, um belo de um alívio. A vida, esta sábia. Era amor sólido demais para que não se desmanchasse no ar.

Sempre teu,
Albuquerque.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

missivas

Queridos desta esquina,

Já vem de longe minha secreta paixão por cartas. Confesso mais: vem de provocações edípicas. Guardo até hoje as cartas, os bilhetes, os cartões que meu pai, tão ocupado, me deixava, nem sempre por algum motivo ou data especial. Foi assim que aprendi que cartas são fotografias verbais, capazes de fazer uma aproximação possível na distância, uma intimidade acariciada pela palavra, um tempo de dizer e um tempo de ouvir. Um registro, um pedido, uma espera de resposta, uma ansiedade, uma chegada sem corpo, mas plena de intenção – palavra que se repete, que reverbera, que diz de novo, mais uma, e quantas vezes a buscarmos ou pudermos dissecá-la por outro ângulo, por outra interpretação.

Foi sem perceber que assumi, eu também, esse jeito de dizer de mim, de tocar o outro com uma palavra que datada, eterniza-se no papel. Essa é a grande diferença entre a palavra falada e a palavra escrita: o compromisso que esta última exige ao fazer-se registro, prova, manifesto e documento. A palavra escrita tem assinatura. Destino, remetente e endereçamento. Ela é história, testemunho e testemunha.

Foi assim que um dia, lá se vão vinte anos, arrumando uma armário, cena prosaica, coisa banal, encontrei a caixa. Eu sabia exatamente o que ela guardava: todas as cartas que eu mesma escrevera ao meu marido, o pai das minhas filhas. Ele as lia e deixava-as sobre a primeira superfície que encontrasse pela casa. Era eu quem as recolhia e guardava.

Naquele dia, sentei-me no chão com a caixa entre as pernas. Organizei os papéis em ordem cronológica e comecei a relê-los. E aquelas palavras, antes endereçadas a ele, fizeram de mim meu interlocutor. Naquela tarde, meu lamento, minha queixa, meu pedido pelo seu olhar que não vinha, minha indignação, minha solidão, minha tristeza me voltaram como pergunta, questionamento, inquisição. Eram quase dez anos de uma fala que se repetia, mudando de circunstância, de data, mas sempre em reedição. Estava lá, diante dos meus olhos, a insatisfação que eu não vi. O impossível do encontro que adiei admitir. Eu estava lá em espera, em ameaça de partir. Eu estava lá, coagulando no tempo. Naquele dia fui embora, rumei ao meu melhor destino, aquele que escolhi.

Esta esquina virtual nos aproxima também por esta via. Conosco senta à mesa aquilo que temos a dizer. É nossa palavra e somente ela o que nos representa para o outro. Na blogosfera, somos o que atuamos, o que fingimos, o que dizemos ser.

Entretanto, acontece coisa curiosa... ao mesmo tempo em que muitos de nós entram e saem (dos blogs, dos sites, dos bares) sem deixar rastro ou palavra (o contador da página nos diz isso); nossa natureza humana, gregária, sensória... nossa tendência às identificações e à curiosidade, talvez, nos instiga a buscar contornos físicos, a investigar “verdades”, ao encontro do olho no olho, a tornar real o virtual. E, mesmo em tempos apressados, em distâncias medidas em quilômetros, em impedimentos e resistências, tenho conhecido pessoas e encurtado essas distâncias e estranhamentos.

Outro dia isso aconteceu com Cecilia (do blog Lua em Libra). E numa tarde em que o tempo foi pouco, tamanha a vontade de ficar mais, restou-nos a volta à blogosfera, agora num espaço com jeito de meio do caminho, de ponto de encontro, de quarto de confidências, de caixa postal com gosto de aproximação possível.

Já indo embora, subindo as escadas que a embarcariam de volta para Porto Alegre, onde mora, Cecilia ainda me perguntou: ...será então um blog de missivas?

— Sim, Cecilia, missivas do porto e do rio.

Estão lá nossas cartas abertas, um pouco mais que compartilhamos, e o post-scriptum, espaço coletivo, que não termina nunca, a espera de vocês. Até breve, até o meio de nossos caminhos,

Um beijo,
Guilhermina

quinta-feira, 2 de julho de 2009

agàpe: prazeres indecentes de tão bons... - por Nine

Em grego agàpe significa amor, afeição, amizade. Segundo o Houaiss também significa festa, banquete, refeição, almoço de confraternização. Em latim tardio pode ser traduzido como amor, amizade, caridade e refeição fraternal.

"Devemos comer tanto quanto a fome exige e bebermos tanto quanto a sobriedade permite" (Tertuliano, o africano, Apologia cap 39). O que se destaca nos significados dessa palavra é que há várias maneiras de comer e nenhuma delas é inocente...

”Comer & beber” é um dos maiores prazeres que o ser humano tem. Creio que só é suplantado pelo prazer carnal. Com a ressalva de que podemos viver sem sexo, mas não podemos viver sem comida!

Comer não é só se alimentar ou não deveria ser... Como gosto imensamente de cozinhar, meu prazer já começa na imaginação, como todos os outros prazeres... Na escolha dos ingredientes e em sua manipulação. Temperos, cheiros, texturas já movimentam os sentidos

Santo Agostinho em suas "Confissões" cap X, escreve que entre o mal estar da necessidade (a fome) e o bem estar da saciedade, estende-se uma armadilha com as redes da cupidez. Lembrem-se que cupidez tem a mesma raiz de cupido, o deus do amor. Pois essa passagem diz ele, é em si mesma uma volúpia! "E quem é, Senhor, que não se deixa um pouco levar fora dos limites da necessidade?!! "Quem sou eu para contradizer um santo homem! Me deixo sempre!

Creio que o ato de comer junto com outros, diz muito sobre as pessoas à mesa. Sobre a voracidade ou temperança, gentileza e educação. Não gosto muito de pessoas que vivem de dietas e só falam disso, que "não comem"! Por isso mesmo cada vez mais, gosto de homens gordinhos; não gordos, não obesos, apenas aqueles em quem o pequeno sobrepeso denotam prazer à mesa. Ai a minha delirante imaginação já me leva a pensar que ele também aprecia outros prazeres. Gente que gosta de comer e cozinhar é quase sempre companhia agradável, almoços de domingos que se estendem pela tarde, longas conversas, risadas. Uma delícia!

Um amigo, corretor de imóveis, me contou que sempre que é possível, quando vai levar um cliente num apartamento ou casa, chega antes e coloca uma maçã com canela e cravo no forno para assar.

Quando o cliente chega, a casa esta cheirando a maçã assada, canela, doce aguçando os sentidos... ele me disse que quando isso acontece, dificilmente perde essa venda!

Nossos sentidos produzem sensações maravilhosas. Experimente ir ao mercado municipal da sua cidade e fazer como a Amélie Poulain, mergulhar as mãos de olhos fechados numa saca de cereais... Compre legumes de cores e formas diferentes e feche os olhos e sinta seus odores e suas formas. Vá à feira livre ou a uma loja de temperos, compre vários diferentes, feche os olhos e os aspire profundamente, separadamente. Depois os misture, faça combinações, a priori, estapafúrdias. Já fiz frango com aniz estrela e ficou bom!

Asse frutas, coloque alecrim e noz moscada nas batatas de todo dia e leve ao forno, pegue um maço de sálvia fresca, esfregue nas suas mãos e sinta que perfume!

Contudo estar à mesa com alguém, ou varias pessoas, pode tornar-se um lugar perigoso. Um lugar de revelações: tem gente que acha comer tão necessário quanto condenável. São pessoas que se reprimem tanto que devem ter algo a esconder... A própria restrição deve ser uma volúpia, um pecado... Não sou psicanalista, mas já fiz tanta analise que me permito afirmar que no ato de comer existe uma inversão. Porque não é depois que tomamos consciência das reais razões do ato. Os perigos morais de cama e mesa são conhecidos, temidos e ou assumidos. Já sabemos que não vamos nos controlar, nos censurar! Comemos muitas vezes demais, bebemos demais, amamos demais também! Quem nunca acordou dizendo que "nunca mais" vai beber e ou comer daquela maneira?!...

Para concluir, comer e amar são atos interligados. Os dois proporcionam prazeres inenarráveis, ambos exigem temperança, mas com certa voracidade para ser bom demais. Ambos trazem momentos de comunhão universal, momentos de felicidade mesmo!

beijos
Nine de Azevedo

PS. Querido Visconde, escrevi essa pensando em você e nesse prazer que nem é secreto, que compartilhamos, de cozinhar e comer bem e no meu último fim de semana...