terça-feira, 31 de março de 2009

viagens: Monet & cola - por Visconde de Albuquerque

Esquina iluminada,

Vivemos em tal nível na exposição de idéias nesta esquina que por vezes até me olvido do terreno pantanoso em que tantos irmãos nossos patinam. E caem. Mas uma voz devolveu-me à realidade. Escrevo ainda sob o impacto da entrevista que me concedeu a doutora em Educação Wanda Engel, ex-secretária de Assistência Social no governo Fernando Henrique, cargo equivalente ao de ministro, e ex-chefe da Divisão de Desenvolvimento Social do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em Washington. São dados tão estarrecedores que, por estupefato, gostaria de dividir convosco.

Senhoras, senhores: no universo de pessoas entre 16 e 60 anos no Brasil - ou seja, a população economicamente ativa -, a escolaridade média é de pífios 16,4%. Céus, nem nas minhas suposições mais pessimistas seria eu capaz de chutar um número tão ralo! Dos atuais 10,6 milhões de jovens entre 15 e 17 anos, só 48% estão no Ensino Médio, sendo que dos 3,6 milhões anuais que se matriculam na 1º série, apenas metade termina os estudos. Em outras palavras, os outros 1,8 milhões morrem na praia! Contou-me a dra. Wanda: "Hoje, vivemos o absurdo de termos postos de trabalho disponíveis e falta de pessoal qualificado para ocupá-los. O mais brutal é que o desemprego entre a juventude - segundo a PNAD de 2007, 61,4% do total no Brasil - atinge o triplo do registrado em outras faixas etárias. Cresce o percentual de jovens que não estudam nem trabalham. Os índices de violência já corroem mais de 10% do PIB nacional. Se providências urgentes não forem tomadas, haverá um apagão de capital humano. Cabe ao jovem escolher se vai permanecer vivo; às empresas, se querem dispor de recursos humanos qualificados; e, ao País, se pretende ser competitivo no ambiente internacional". Que palavras fortes. E quanta lucidez.

É o descaso com que sempre se tratou a Educação no país - não vamos nem dizer a Cultura, esse acinte, quase um deboche, do luxo - mostrando a sua conta, com juros exorbitantes e correções extorsivas. Senhoras, senhores, passamos a vida a ouvir falar de desemprego e agora temos emprego e não há pessoal habilitado a empregar-se? Disse-me a doutora que foram importados 700 chineses para Macaé-RJ, porque lá não havia gente capacitada. E 10% - rapaz, 10%!!! - do PIB são dragados pela violência??? É o crime do abandono ao campo educacional sendo pago com o crime vulgar das ruas. Isto, sim, é uma economia indexada. O resto é conversa para inglês e, principalmente, francês ver.

Pois, entre a perplexidade e o pavor, veio-me de imediato uma imagem recente que, pela Academia Brasileira de Letras, peço-lhes que não interpretem como pedante (característica que julgo abominável). Estava eu no Museu d’Orsay, na França - onde, a meu gosto particular, estão reunidas as mais lindas pinturas do planeta, posto que tenho veneração pelos impressionistas -. quando pus-me a observar uma criança com seu pai (entre tantas outras crianças que lá estavam com seus pais) diante de uma tela. Virei para minha dama e indaguei-lhe, melancólico: "como vamos competir desse jeito"? Ela limitou-se a responder com um sorriso triste. E agora pergunto-lhes, senhoras, senhores: como vamos competir desse jeito? O que temos feito de nossas crianças? Que seres humanos temos formado? Enquanto em um mundo crianças viajam em quadros de Monet, em outro crianças viajam em latas de cola. Muita covardia falar em competitividade. Os países emergentes estão a esfregar nas nossas faces os resultados de seus investimentos em Educação. É como se dissessem: "êi, quem diria, botar uma graninha nessa joça de escola até que não é de todo mal, hein? Dá pra tirar um troco depois!"

Que dizer das sucatas em que se transformaram o grande projeto do prof. Darcy? Que dizer - num patamar mais distante - de gente como a gente, como um colega meu de faculdade, que ao ver-me certa feita trabalhando na produção de um show (ele, um músico), disparou-me sem dó nem piedade: "se era pra fazer isso, de que nos serviu cursar a universidade"? Por atônito, calei-me. Pois que, para mim, serviu-me para tudo. Na vida universitária, encontrei idéias, pensamentos, interpretações, livros, filmes, peças, efervescência, pulsação. Mas como querer, de quem vira as costas até para a educação básica, que entenda, de uma vez por todas, que cultura não é supérfluo, adereço, charme, frescura? Que não existe vida sem arte? Essa concepção rudimentar agride nossa inteligência, denigre nossa sensibilidade. Ora, por favor, é a humanidade a se contar!!! De novo, citarei Calcanhoto, que em passagem de seu livro diz que não come doces, mas ia comer pastel de Santa Clara (ou outro doce tradicional luso, não me recordo), pois estava em Portugal e em Portugal pastel de Santa Clara não era doce, mas cultura. Que tal? Muito requinte para paladares toscos, não?

Crianças nossas, crianças do Brasil: que os anjos as protejam.

Abraço-lhe com ternura.
Albuquerque.

segunda-feira, 30 de março de 2009

de que poder você está falando?

Rita, que já nos visitou algumas vezes nesta esquina, vive a me atazanar a idéia com as dificuldades da nossa língua. Parece até que ela permanece à espreita, em tudo quanto é esquina, a zombar de pequenas confusões e grandes tropeços entre pessoas, que tentam obter sucesso no desafio de comunicarem-se. Eu não gosto, mas sou obrigada, vira e mexe, a concordar com ela.

Outro dia mesmo estive às voltas com a palavra poder. Como que uma mesma palavrinha, destas tão pequenas que nem podemos brincar de separar-lhe o radical de prefixos e sufixos, que usamos a três por quatro, sem nem titubear ou pensar duas vezes... que é verbo e é também substantivo... como pode (ops) esta coisa tão banal ser tão bipolar? Como pode (olha ela aí de novo, gente!) nos servir para falar de possibilidades, de aptidão, de motivo e razão e como que transvestida, ou obsedada por outra personalidade, outorgar-se ares de domínio capaz até de vociferar proibições.

Ok, eu concordo que tenho problemas com o poder. Basta elevar o tom da voz para que eu não escute o conteúdo. Sou contra. Não farei. Discordo. Toda tentativa de acuar-me à submissão parece pílula mágica de efeito rebote: vai na veia, sobe ao coração que bombeia pelo corpo inteiro uma reação em cadeia de recusa e revolta. O poder clássico, poder determinado por patentes me é tão anacrônico, que na melhor das hipóteses, me provoca o riso. E o riso, é claro, soa àquele que se define por seus galões como puro deboche, o que lhe enfurece. Jamais saberão responder uma pergunta: por que deveria lhes obedecer? Não chegam nem um passo além do “porque eu estou mandando”.

Há também o poder de merda: aquele que pode fazer muito pouco para encontrar a solução, mas possui muita intimidade com a capacidade de atrapalhar. Diante deles, o inferno é muito próximo. Repartições estão abarrotadas de seus exemplares. Seu efeito é imediato e se caracteriza por ser o caminho mais curto para te levar ao mais alto índice de irritabilidade e exasperação. São excelentes testes para o seu autocontrole. Se lhe for possível controlar o ímpeto de tomar-lhes o pescoço numa esganadura que só arrefece quando o ar cessa, você avança umas cem casas rumo ao paraíso. Afrontá-los, no entanto, não costuma ser de grande inteligência. É preciso por em prática a arte do contorno. Fingir obedecer-lho costuma ser uma armadilha mais eficaz, que lhe enche o saco da vaidade fornecendo-lhe o prazer necessário para “te ajudar”. Entendeu? Ele vai fazer porque quer! Porque hoje está de bom humor. Não é porque é sua função, seu trabalho... nem porque é o correto... Não, nada disso. Ele vai fazer porque foi com a sua cara. E regozije-se deste pequeno triunfo, enfiando a sua vaidade no saco e dando-se por satisfeito e consolado de ter conseguido o que queria... E de que ele é um infeliz, por certo.

Mas, exasperação mesmo, desespero e desolação, suplício e terror é o poder da vítima! Desse, quero toda a distância que puder percorrer. Entrego todas as minhas milhas para voar até Pasárgada, e se não der, vou de navio e de trem para Tombucutu! Essa história de que eu tenho que obedecer, fazer tudo que você mandar, porque você é uma pobre coitada, acometida por alguma tragédia da vida... Essa é para aniquilar até com nervos de aço.

É claro que não estou falando dos momentos das grandes dores. No luto, no diagnóstico de uma enfermidade, na separação de alguém amado e sabe lá em mais o que, que afinal cada um é que sabe o que lhe é insuportável... tô dentro, tô perto, tô junto no meio da madrugada, debaixo da chuva ou em pleno deserto. Mas há solitários, há viúvos, há doentes de uma vida inteira... que se recusam à reconstrução para angariar a compaixão alheia. Não podem perder de jeito nenhum o álibi que lhes justifica a tirania. Engolem a vida dos filhos, parasitam dias e noites dos amigos, e por aí vão chefiando cadeias de infelicidade, em efeito dominó. Tô fora! Vê se me erra... e não adianta vir com o jogo de culpa, que não caio. A vítima tem certeza que eu sou má e insensível às dores alheias e eu tenho certeza que não há crueldade maior que a sua. Ficamos assim e que nos julguem os céus e os infernos!


Fui
Um beijo,
Guilhermina

quinta-feira, 26 de março de 2009

Orgulho e Preconceito - por Nine

Querida rainha Guilhermina e membros da sua corte,

Tenho refletido muito sobre tolerância, diferenças e preconceitos.

Luto contra os meus acirradamente. Tento entender quem os tem, mas tenta vencê-los, assim como eu. Só não me conformo com os que tem, e não fazem nada contra!

Refiro-me a qualquer preconceito. Eles pairam como uma sombra malfazeja nos afastando de pessoas, muitas vezes, maravilhosas.

Começo pelos que eu mesma já sofri, e ainda sofro às vezes... Meu pai se chamava Isaac, era comerciante, não somos judeus, talvez marranos, somos descendentes de espanhois da Andaluzia e portugueses do Algarve. Minha mãe dizia que temos sangue índio também de tribos das Gerais. Cresci escutando quando passava na rua: Ela é bonitinha, pena que é filha do judeu da loja! Uma vez no ginásio uma falsa amiga, gritou depois de uma jogada mal sucedida de vôlei: Também, filha de judeu só podia dar nisso! Já tive os que implicaram com a minha bonita cor de caramelo claro. Aliás nunca me preocupei com a minha cor, até ir aos Eua pela primeira vez, e me dizerem que eu não sou branca como se me insultassem! Agora digo, escrevo, que sou hispânica. Para completar o quadro, tenho uma tatuagem tribal, grande, abaixo do umbigo. Preciso ficar dizendo que tatuagem não muda caráter de ninguém, nem qualifica ou desqualifica uma pessoa. Deveria ser só uma questão de gosto, mas não é! Não sou bandido, nem marginal, nem prostituta. Apenas gosto de tatuagens. Acho que tatuadores são artistas e amo toda forma de arte.

Preconceitos segregam pessoas, trazem violência e tudo que abomino no ser humano. Sou como um sismógrafo, sofro de hipersensibilidade. Qualquer abalo, tremor na crosta humana eu percebo, mas tenho meus pontos cegos...

Quando vejo, não entendo como tem gente que deliberadamente não gosta de uma pessoa porque:
1)ela mora na zona leste de São Paulo (creio que seria como morar na baixada no Rio ou nas favelas),isso, sem saber nada dela...
2)ele é corintiano, flamenguista: Tudo "maloqueiro","barraqueiro", etc...
3)ele é preto! Credo!
4)ele é japa! Ave maria!
Depois do 11 set,
5)ele é árabe, muçulmano! Por Alah!
6)ele é homosexual! Instaurem a santa inquisição
7)ela é lésbica! Idem
E vários outros que não cito porque senão a crônica iria longe ...

Não é visivel quanta gente deixamos de fora da nossa vida dessa maneira? Miopia social?

Penso que são essas pessoas que provocam os aborrecimentos, as mágoas, a tristeza e a miséria do mundo. São fazedores de dramas. Não vejo qualidades nessas pessoas. Sei também que é um tipo de preconceito e orgulho. Julgo-me melhor que elas. Para isso também preciso lutar, não sou melhor que ninguém. Tive a sorte, a genética, a formação, de ter a mente mais aberta, de ser tolerante com as diferenças. Me conecto com os seres que encontro por ai com o coração, as aceito com a emoção. Deveria ser sempre assim para todos num mundo ideal...

Mas a realidade nos grita outra coisa. Continuamos a pré-julgar as pessoas. Para mim tudo isso é evanescente, pueril, fútil. E perigoso. Nossos demônios interiores precisam ser vencidos por nós mesmos, com ajuda de um psicanalista se possível. Mas tem gente que vive a procura de demônios exteriores. Fica mais fácil para eles colocarem os problemas no outro. São os "perdidos", que segundo eles, deixam a sociedade ruim. E os perdidos são todos que ousam pensar diferente, ser diferente. Os que vivem no "dark side".

O orgulho e o preconceito transformam o ser mais elegante e refinado num selvagem assassino. A história já nos deu inúmeros exemplos, e a gente não aprende, nem por bem, nem por mal... Bestial no ódio, orgulho animal e cruel. Eles ficam nus, precisamos apontá-los!

"Paciência demais é covardia" (Líder dos Panteras Negras).

beijos afetuosos a todos e especialmente a você minha rainha,
Nine Azevedo

Este texto foi motivado, segundo a própria autora nos conta, pela matéria publicada no Yahoo: Gays precisam de tratamento, acreditam terapeutas britânicos.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Chega uma hora que chega uma hora: A orquestra já nos chamou – por Visconde de Albuquerque



Girassol Susanna,

Quando li teu comentário sobre Leila Pinheiro, abri meu coração, tremeu o chão, eu vi que era feliz. Por amar tanto a música, ouço cada vez menos música, e isso já vem de anos. Desde sempre escutando música aos borbotões e, mais tarde, tendo feito isso também por questão profissional durante um longo período, chegou uma hora em que, sinceramente, chegou uma hora. Há música em todos os lugares e o tempo todo. É uma tal saturação! Música na loja, na sala de espera do consultório, no elevador, no carro, no hotel, no escritório, na praia, no restaurante, na casa das gentes, como se o mundo corresse o risco de entrar em colapso fatal mediante uma momentânea zeração de decibéis.

Quando alguém me conta, com os olhos brilhando, que agora tem uma engenhoca capaz de armazenar 115 milhões de músicas, não consigo nem disfarçar minha decepção com a (em tese) boa nova.Nas caminhadas por essa estonteante orla, dá-me gastura ver as gentes a passarem sôfregas com um fonezinho embutido na orelha. Não sei vocês, mas este mequetrefe cheio de rabugices anseia por silêncio como um astronauta delira pela lua. Os segundos que antecedem minha subida em um táxi são acompanhados de terríveis expectativas. Outro dia, a própria Leila - sim, a Pinheiro - disse que pede para desligarem o rádio assim que entra em carros alheios. Oh, minha alma encheu-se de júbilo: eu não estava só nesse mundo de sons intermitentes. Bem ao contrário, vi-me na mais fina companhia. Logo uma cantora! E logo ela!

Eu disse Leila? Pois eis um exemplo perfeito de entendimento da música. Afinação, precisão, limpeza. E pausas. Muitas pausas. Que mesmo a música não prescinde de seus silêncios, suas respirações. Um instrumentista como Yamandu, com todo o respeito ao virtuose, deixa-me atordoado ao fim de uma única audição. É uma tal profusão de notas em cada mísera frase musical que me quedo zonzo, fatigado, abatido. Parece querer enfiar todos os acordes do universo em uma única sequência harmônica. O cara sola na pausa. Já o violão de Guinga, o piano de Jobim, o trumpete de Chet Baker, aquela justeza...Nada sobra, tudo eleva. Aí, sim, vem a vontade de parar tudo para que esses sons vibrem em plenitude.

Além de recomendar o blog da querida Pinheiro (em http://www2.uol.com.br/leilapinheiro), onde ela posta dicas culturais bacanas, que evidenciam sua persona sofisticada, deixo-te - e aos demais, ça va sans dire - com 3 sugestões para massagear nossos combalidos tímpanos:

- A própria Leila em Onde Deus possa me ouvir (Vanderlee)
http://app.radio.musica.uol.com.br/radiouol/player/frameset.php?opcao=umamusica&nomeplaylist=008828-6_13<@>Nos_Horizontes_do_Mundo<@>Onde_Deus_Possa_me_Ouvir<@>Leila_Pinheiro_<@>0350<@>Leila_Pinheiro_<@>Biscoito_Fino<@>

- Esse escândalo que é Are you going with me, com o guitarrista Pet Metheny e orquestra em concerto em Lisboa.
http://www.youtube.com/watch?v=avwXET5ippQ&feature=related

Três (Marina Lima e Antonio Cícero), na voz de Adriana Calcanhotto - A parceria entre irmãos em grandíssima forma.
http://app.radio.musica.uol.com.br/radiouol/player/frameset.php?opcao=umamusica&nomeplaylist=010167-9_03<@>Maré<@>Três<@>Adriana_Calcanhotto<@>0350<@>Adriana_Calcanhotto<@>Sony_-_BMG<@>

Abraços enternecidos.
Catavento Albuquerque.

domingo, 22 de março de 2009

topografia da existência



Estive ao vivo e a cores com a Susanna. Esperava por alguém que fosse alta e determinada, vestida num jeans (já que recentemente ela nos contou que não usava vestido), cheia de arestas, com o olhar agudo e a língua afiada. Eu não sabia bem como nos reconheceríamos e não me venham com essa de que a foto dela está aí, não tinha como errar, porque a imagem minúscula que está aí não revela ninguém.


Não nos perguntamos tampouco como estaríamos vestidas, nem por algum traço que nos ajudasse a descobrir uma à outra. Marcamos um lugar e pronto. Sentada na varanda, um andar mais alto que a rua, eu tentava uma vantagem – vê-la antes de ser vista. Aconteceu de algo me distrair dos movimentos da rua e eis que uma voz doce e mansa me perguntou – você é a Guilhermina?


Levantei de pronto denunciando que vir de vestido era um golpe. Ela só sorriu. O abraço foi sem cerimônia e a conversa farta. Falamos sem pausa nem reticências durante três horas e só interrompemos porque ela ainda tinha uma boa distância para percorrer até em casa. Como interlocutor, ela foi delicada e perspicaz; arguta mas livre de arestas e consistente na placidez dos modos mesmo diante dos vulcões.


Tudo que ela me trouxe era lindo! A juventude é linda! O despojamento, a avidez, as idéias que trazem certezas, Os ideais que parecem que não morrerão nunca, as mil linhas que sublinham as paixões. Ah! As paixões! E, não se antecipem, pensando que estou falando somente de amores, de carne, de sexo, de namoro, da eleição de somente um, de casamento... isso é só uma das possibilidades das paixões. O que Susanna me trouxe foi a paixão na respiração. Um jeito de ver a vida e tudo que ela envolve. De sofrer sem comedimento nenhum com tudo que a ofende, que a confina, que a impede. De recusar tudo que pode arrefecer esse modo de estar vivo, de andar no mundo e de sonhar com ele. Seja de onde vier: pode ser do pai, da mãe, do namorado, da amiga, do chefe, do professor. Pode ser do anônimo, do amado, do conhecido ou não. Se é impedimento, ela não quer e não adianta insistir. Se é pra sofrer, que seja! Não pode é ser morno, insosso, insípido e inodoro. Aliás até a água é H2OH!!!!! Susanna é mansa na forma, não no que lhe vai por dentro.


Depois que Susanna se foi, voltei a ficar só comigo... Então vim pra esta esquina onde parece que o mundo recomeça e que o horizonte se alarga só para me garantir que o infinito existe e ai de quem duvidar! A verdade é que esta esquina tem me feito me lembrar de mim. Não de quem eu era, mas de quem eu sou e andava esquecida.


Este rascunho é na verdade um agradecimento à juventude que me chega, emprestada por vocês, e me transforma em uma igual. Pela mão de vocês o tempo fez um contorno só pra me devolver o que nos últimos anos andei largando por aí. Meninos, eu tinha me convencido que paixão era só risco, só desperdício, só confusão. Eu tinha acreditado que a maturidade é um exercício de se com-formar (!), eu tinha empoeirado. Como se assim estivesse combinado que o sofrimento seria menor, e que o garantido me visitaria em seu lugar. Andei destreinada nas confissões de amor e confundindo adrenalina com ataque cardíaco. Entulhei o dia de obrigações que me afastassem da vida e disse a mim mesma que sonhos são somente ilusões.


Não envelheci porque o tempo desenhou umas linhas no meu rosto e acumulou um contrapeso no meu corpo, especialmente na minha barriga. Envelheci porque me guardei no baú e fechei as janelas.


Então vocês chegaram acendendo a luz e abrindo todas as janelas para que saísse o mofo. Trouxeram música e poesia, riso e brincadeira, quase nada de maquiagem, sandálias havaianas e começaram a conversar... simples assim, grande desse jeito. Falam de perdas, de desejos, de sonhos, de indignações, trazem citações e falam por conta própria, pedem desculpas antes até de que eu me magoe e começam de novo, sem melindres. Meninos e meninas, frequentadores desta esquina, vocês são o máximo!

***

Susanna tem um blog chamado topografia de interesses, ao qual eu insisto em chamar de topografia da existência. Freud explica: projeção e água benta, cada um usa como quer. Susanna, generosa como sempre, ri do meu ato falho, dá de ombros e me manda sempre fazer dele bom proveito.


Obrigada Susanna,

obrigada, meninos e meninas.

Um beijo,

Guilhermina

sexta-feira, 20 de março de 2009

porque non te (maria) callas? - por Visconde de Albuquerque



Minha preciosa abelha rainha,

Quanto tempo tenho pra matar essa saudade? Sei que te arrependes, com todas as tuas forças, das vezes em que me reconvocaste para tua esquina. De certo, te esqueceras que sou ser sem meio termo ou comedimento. Ou sumo na poeira ou me torno onipresente. Ora passo a baldes de folhas verdes e sucos de todas as frutas que há na T(t)erra, ora entrego-me a uma infinidade de travessas de massas, sobremesas esculturais e copos de vinho possíveis de assimilação. Ora exercito-me de fazer corar a Fernanda Keller, ora quedo-me prostrado diante da TV na minha patagônia. Ou emudeço, apenas a contemplar teus pensamentos, ou desando a falar mais que a Preta Gil em teus domínios. Enfim, coube-me a presidência de honra do MSM-Movimento dos Sem Medida.

É que sou um homem feliz, por empolgar-me sem rédeas em variadas instâncias. Além da luz de ter-te como afeto, eventos azuis me perfumam os dias. Contou-me o prefeito carioca em entrevista, por e-mail: "Talvez a face menos visível, mas mais danosa do que o Rio viveu, seja o abandono dos nossos ideais, das nossas vocações. Deixamos de ter uma postura de atração de investidores, de desenvolvimento, de geração de empregos, de vanguarda. Precisamos voltar a ser ousados, empreendedores, criativos". Não votei em Duda. Fui um desses verdes que deixou de viajar para a ilha de Caras no fim de semana da eleição no intuito de entronizar o companheiro Fernando no palácio da São Clemente. Mas li com alegria que Paes vai estender o horário de estudo de mais de 100 mil alunos de 150 escolas da rede municipal de ensino das quatro horas e quarenta minutos atuais para sete horas de aulas e atividades culturais e esportivas.

Que ressoem os tambores! Sou um tolo emotivo, bem sei. Por qualquer migalha na esfera educativa e social, ponho-me sem o menor pudor e senso crítico a aplaudir alcaides, xerifes, príncipes e outros fidalgos. Mas - fazer o que? - é a política -, malgré elle-même. Além disso, o ex-ministro Pratini de Moraes garantiu-me ontem também em entrevista, esta por telefone, que, para enfrentar a onda protecionista imposta às exportações brasileiras devido à recessão internacional, o país deve responder na mesma moeda, estabelecendo restrições aos produtos de países que bloqueiam nossas vendas. "Se não quer comprar meu tecido ou meu aço, não compro teu vinho ou teu avião", sintetizou ele, num ajuste quase poético à lei de talião. Ah, quer saber? Gostei dele. No lugar daquele blábláblá extenuante de déficit da balança comercial, pão pão, queijo, queijo. Só faltou dizer: Pau na canalha, Brasília! Simplinho assim. Ah, não me culpe por insistir em ver poesia até onde poesia não há. É meu viver, amada.

Ainda um outro motivo de júbilo. Este teu amigo já havia citado em postagem aqui um trecho de Saga lusa, de Adriana Calcanhotto, em que ela chama atenção para a beleza que é o Dia de Portugal ser uma homenagem a um poeta - Camões. Pois bem. A praça do Comércio, caminho para o restaurante Martinho da Arcada, pouso de Fernando Pessoa, está toda fechada com tapumes, devido à obra de recuperação do rio Tejo. Em alguns deles, tapumes - em vez da grafitaria que emporcalha as fachadas de pindorama -, salta aos olhos um poema de Pessoa, ou melhor, Alberto Caeiro: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia / O Tejo tem grandes navios / E navega nele ainda / Para aqueles que veem em tudo o que lá não está / A memória das naus / (...)". Mais uma linda lição dos velhos e bons tugas.

E, como urge apaziguar a sede e a fome galopantes dos sentidos, permita-me deixar uns agradinhos que este catador de bálsamos andou a recolher para regalar-nos a alma (no que intento, secretamente, também marcar uns pontinhos com Susanna, que parece apreciar umas recomendaçõezinhas...):

1. A inacreditavelmente bela canção Ventos de Paz, de e com Leila Pinheiro. Sobre esta preciosidade, num almoço em casa para Vera, irmã de Leila, perguntei-lhe de chofre: Tua irmã agora virou santa? "Santa?", espantou-se ela. Sim, expliquei-lhe, pois que isto não é uma música. É uma prece. Ouçam:
http://www.mp3tube.net/musics/Leila-Pinheiro-Ventos-de-Paz/128187/
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2. O DVD Sinal dos Tempos, de Antonio Villeroy - Gravado ao vivo com a Orquestra de Câmara do Teatro São Pedro, de Porto Alegre, é lindo, lindo, lindo. A começar pela música título: É preciso acordar / É preciso mergulhar mais que mil pés / Onde Netuno traça o rumo das marés / É preciso acertar a direção dos pés / Quando os velhos caminhos se esgotam / E os tempos não voltam.
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3. O filme Milk - A voz da igualdade
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4. O CD João Pinheiro canta Sade (http://www.myspace.com/joopinheiro) - Voz linda de travesseiro e arranjos inspiradíssimos com pandeiro, cuíca, cavaquinho e tudo para as músicas da elegantérrima dama nigeriana.
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5. O livro As tais Frenéticas, da queridíssima Sandra Pêra. Inteligente, talentosa, engraçada, Peralta é dessas figuras que iluminam o ambiente em que pisam.
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Perdoa as delongas deste nobre vagabundo. Devo alimentar a esperança de nos vermos, oráculo meu?
Abraços de muita saudade. Beijos em todos na tua casa.
Albuquerque
PS: Gostaste da foto?

quarta-feira, 18 de março de 2009

o outro, nós e a fronteira final - por Nine

Não sabemos nada sobre o outro, ou muito pouco...

Fui levada a esses pensamentos por Rimbaud. O que levou esse jovem poeta a vender armas e a não fazer mais poesias, a querer um filho, que dizia, iria passar a vida a ensinar e a ornamentar... Na Abissínia se tornou também comerciante de café, mas nada de poesia. O que aconteceu dentro dele para abandonar a poesia, quando tinha tão promissor talento?

Ele foi o 10° homem ocidental a penetrar na 7° cidade muçulmana na África. Ficou lá 5 anos, escrevendo à família que a África embranquecia um fio de cabelo dele por minuto, mas não foi embora, morreu lá... Sua irmã pagou dez missas na igreja dos capuchinhos alegando que ele tinha apreço por essa ordem, será? Tão contraditório... Mas somos todos... Um mistério nunca revelado.

Um homem que eu pensava conhecer bem, também foi para a África dele. Sem explicações, partiu! O que se passou com ele para fazer isso? Nunca saberei, talvez nem ele saiba... fugiu da raia e de saia.

Desconheço-me às vezes também. A gente vive em geral de maneira que não queremos. Temos medo de ir além, ao desconhecido, mesmo que o presente esteja ruim. Ficamos paralisados numa moldura de vida que já não nos serve.

Só tenho sido apresentada a homens inconsistentes, medrosos, sem poesia. E a poesia é um vicio que tenho, não consigo viver sem ela. Não sei ter amigos com reservas, nem amores com precauções.

Um amigo querido me disse ontem, que eu acredito em tudo o que me dizem. Que sempre falo: Mas ele disse.... Que devo me comportar emocionalmente como uma prostituta quando faz um "programa": não me importar, não me apegar, ser indiferente! Impossível para mim, Ele disse que eu tenho uma ingenuidade que não funciona mais, só me machuca...

Sempre olho nos olhos das pessoas. Lembro de pessoas que cruzei olhares e troquei frases na beira de estrada há 20 anos. Claro que não me lembro de todas, mas as que me trataram afavelmente, dedicaram-me um certo afeto, um reconhecimento, um espelho, essas carrego comigo.

Tenho me sentido fora do meu habitat. Mas creio que não é espaço físico. São meus semelhantes, minha tribo que não acho. Ou então acho alguns, como seres em extinção, últimos dos moicanos. Estou virando autista por opção, não consigo me comunicar com as pessoas e nem elas comigo. Elas me estranham e eu a elas. Tento, sorrio, converso com elas, mas acabo batendo num muro inexpugnável... Sinto-me cada vez mais isolada no meu mundo. Tudo em que confiava, em que acreditava, desapareceu. O isolamento fica cada vez mais espesso como um quarto acolchoado, para não ferir meu coração que foi partido, às vezes acho que indefinidamente.

O passado me assombra com seus fantasmas, o presente é um deserto onde eu caí do avião da vida, e onde não tem ninguém, faz muito calor durante o dia e muito frio à noite, sem cores... O futuro, onde a esperança mora, esta distante e flou... Preciso achar um oásis logo para não perecer, para não enlouquecer...

beijos afetuosos a você, minha rainha,
Nine de Azevedo.

o caminho para Meca


Elsa, personagem de Patrícia Gasppar, chega, depois de 12 horas ao volante numa odisséia pelo deserto, à casa de Helen (Cleyde Yáconis). Veio nos carregando na boleia até ali. Elsa entra, exausta e irritadíssima, naquela intimidade só das duas. Nós ficamos no muro da casa, um muro de cactos, através do qual podemos ver aquela arte do horror. É dali que a platéia assiste àquela noite de encontro e definição. Em jogo: a vida de Helen. Mas de que vale uma vida africana, aos setenta e poucos anos, reclusa desde a viuvez, desleixada e sem banho? De que vale, aliás, uma vida do deserto sul-africano? Melhor ainda, de que vale a vida? Adianto: nem a própria Helen vê muito valor nisso... a não ser por seu caminho para Meca. Para a sua Meca, caminho que vai pelo Leste.

E o que nos mantém ali, debruçados nos espinhos dos cactos, a escutar a conversa alheia? Desta vez é Helen quem nos adianta. Helen e Cleyde: todo o dia é recomeço. Para qualquer um, em qualquer lugar, todo dia é dia de por os monstros para fora. Eles são feitos de cimento e cacos de vidro, moram em qualquer lugar onde haja vida, qualquer vida. E são enormes!! Desarrumam nossas casas até ganharem o jardim, primitivos e disformes, ávidos por engolir tudo o que nos vai por dentro. São insaciáveis como lombrigas a ocuparem nossas vísceras. Fétidos e distorcidos, na missão de aderirem seus tentáculos até a imobilidade de cada órgão. Visam à nossa necrose e ao nosso colapso. É preciso, é urgente que os deixemos sair posto que anseiam assombrar-nos em nossos próprios jardins.

A céu aberto, livre dos confinamentos que nossos corpos oferecem, sob a abóbada universal eles se expandem até suas dimensões mais exatas. É lá que encontram o ponto de transmutação, a transcendência. Assim, erigidos majestosamente nos jardins dos nossos desertos é que viram anjos... E apontam para o Leste. O caminho possível da liberdade.

Helen, quer dizer Cleyde; as duas; uma no corpo da outra sem que se possa distingui-las, sem que se determine quem é quem, elas nos conduzem da porta trancada à porta do jardim, atravessando o muro de cactos.

Ali, no teatro III do CCBB, no chão de cimento, Cleyde Yáconis é o próprio anjo-demônio. Inteira e enorme de silêncios e de um olhar, que se não for capaz de caminhar até a sua alma e destrancá-la, nada será. Aos 85 anos, ela incorpora uma Helen quinze ou dez (que diferença faz!) anos mais jovem, demônio, anjo e missionária, na determinação de que atravessemos aquele deserto em processo de decomposição pessoal, até o ponto de reversão, onde se pode ganhar a si mesmo. Impossível não desfazer o nó da garganta ao vislumbrar nela uma outra dimensão para si.

Eu agradeço à Elsa por me conduzir soprando e esbravejando o texto de Athol Furgard, pelo qual se chega à Cleyde-Helen, a única capaz de oferecer ao meu anjo-demônio um caminho para minha Meca.

Beijo,
Guilhermina



segunda-feira, 16 de março de 2009

segundo vossos nobres princípios

Caríssimo Visconde,
Prezados amigos de esquina,


Desta vez não pude reduzir minha presença ao espaço restrito de um comentário. O Visconde, amigo de longa data, sempre obteve larga vantagem em nossos encontros logomaníacos por seus ditos zombeteiros e seu refinamento estético. Mesmo assim, arrisco-me sempre à fruição de sua companhia, recolhendo-me à modéstia e ao comedimento de minhas parcas condições de retórica. Mormente deleito-me no arsenal de suas considerações metalingüísticas...


Supracitada esta exígua reflexão acerca de minha estima pelo nobre, olvido minha sofrível condição diante de tamanha magnificência para regozijar-me deste afeto consignado.


Outrossim, apresso-me em seu socorro, serva e suplicante, na aversão aos maus tratos da língua pátria. Ademais, sinto tamanha ojeriza pelos destinos de nossa comunicação (em verdade, a ausência desta) que receio desatinar.


Conjeturando, aliás, sobre o desatino, não seria alguma seriedade um valioso antídoto para tal malefício? O malogro dos nossos ideais não residiria, inequivocamente, na privação de inteligibilidade da nossa palavra? Ora, o esvaziamento do compromisso com o que se diz só pode resultar em discórdia ou traição. O que pode ser, meu caríssimo amigo, mais nefasto?


Visto não desejar a fadiga de nossos interlocutores, me despeço, mas não sem antes ratificar que o humor exige o requinte do verbo e do pensamento, condição longínqua, para não dizer opositiva, à ausência de seriedade. Isso é coisa dos bobos, e garanto, sem lugar nesta corte.


Um ósculo,
Guilhermina



sábado, 14 de março de 2009

enquanto pessoa, e não é fernando - por Visconde de Albuquerque

Queridíssima amiga,

Não sei se você já viu, acredito que sim, e vocês, meninas, idem. De todo modo, acabo de voltar da exposição de Vik Muniz no MAM, e escrevo sob o impacto dela. Que poemas são aqueles em forma de imagens? Nem sei o que dizer. Não tem essa discussão eterna sobre o que é arte e o que não? Arte não tem discussão. A gente bate o olho e vê. Reconhece aquilo como identidade nossa, gene, civilização.

De imediato, pensei no livro Cartas a Theo (L&PM). Com os escritos entre julho de 1873 e julho de 1890 de Van Gogh a seu irmão - e patrocinador -, este livro desmancha a imagem cristalizada que se tem do gênio holandês como (só) o alucinado que arrancou a própria orelha. Muito longe de ser um sem noção intuitivo, discutia pintura em altíssimo nível, com profundo entendimento de técnicas e arrojado pensamento estético.

Novembro de 1885 – Fevereiro de 1886

Com tudo prefiro pintar os olhos dos homens, mas que as catedrais, pois nos olhos há algo que nas catedrais não há, mesmo que elas sejam majestosas e se imponham, a alma de um homem, mesmo que seja um pobre mendigo ou uma prostituta, é mais interessante a meus olhos.”

“Já desenhei duas tardes lá, e devo dizer que acredito que, justamente para fazer figuras de camponeses, é muito bom desenhar à antiga, sob a condição, com tudo, de que não se faça como de hábito. Os desenhos que vejo, na verdade acho-os todos fatalmente ruins e radicalmente fracassados. E sei muito bem que os meus são totalmente diferentes: O tempo dirá quem está certo.”

Mas, para além das artes plásticas, embatuco-me sempre com a língua, a língua, a língua. Se existe uma coisa contra a qual este amante da linhagem portuguesa se debate com toda a dedicação é quanto ao repertório de palavras/expressões da vez, marteladas à exaustão na tv, na imprensa, na rua, na chuva, na fazenda, numa casinha de sapé. Já foi "a nível de", "enquanto pessoa" (quisera fosse o bardo luso), "gratificante", "na atual conjuntura", "fora de contexto", "discurso articulado", "instigante"... Jornalistas, invariavelmente, começam entrevistas com: "como é essa coisa de..?" Atores declaram: "esse papel foi um presente (muito prazeroso, blargh!!!)", "fulano é muito generoso em cena ..." Economistas repetem as "janelas de oportunidades", "os cenários da globalização..." (que, fossem de Mangueira, seriam uma beleza).

Agora, tem o tal de "se reinventar". É a modernidade da ocasião. "Sicrano tem a capacidade de se reinventar..." "Os Estados Unidos precisam se reinventar..." Valei-me, última flor do Lácio! E essa agora de todos acharem lindo não se levar a sério? "Ah, eu não me levo a sério"... E o jornalista lá, endossando a asneira: "Beltrano tem essa capacidade de rir de si mesmo, de não se levar a sério..." Acuda-me, rainha, o que esperar de uma criatura que não se leva a sério? Tudo? Nada? Confundem bom humor com falta de seriedade, reproduzindo o equívoco ad nausean. Isso quando o cidadão não faz observações "pontuais", "com foco em"...

E o que dizer do abominável "com certeza"? Êi, alguém viu o "sim" por aí?
"Você vai estrear alguma peça este ano"? Com certeza.
"A senhora vai ao médico hoje"? Com certeza.
"Teu genro gosta de ópera"? Com certeza.
"Esse terno é para lavar a seco"? Com certeza.
"Gordura trans é indicada para lubrificação de motor de aeronaves"? Com certeza.

Como diriam os grandes filósofos gregos Seu Georgeous e Ana Carolinus: "É isso aí..".Nem vamos entrar no asqueroso terreno do gerúndio, se bem que não resisto: outro dia, atendo o telefone e a funcionária do telemarketing dispara: "Com quem eu devo estar falando?" Como é que é? Com quem eu devo estar falando? É a superação do apogeu. Depois, ridicularizam-se os jogadores de futebol - a maior parte deles de origem humilde, portanto, sem acesso decente à instrução -, por reproduzirem o mesmo ramerrame "vamos entrar com tudo, o importante é que o grupo está unido, estamos preparados taticamente, não tivemos felicidade naquela jogada..." Jogadores de futebol - embora se deseje que cresçam em outros campos além daqueles de capim - não têm obrigação de ser escorreitos e fluentes quando abrem a boca.

Mas de gente que atua na área de cultura e informação e se diz letrada, há de esperar-se um pouco mais. Espera-se, sim, que fuja de jargões e de soluções simplórias ao expressar-se. O massacrante mais do mesmo vai a tal ponto que, quando precisamos, genuinamente, empregar determinado termo, ele já está de tal forma esvaziado de sentido que sua utilização beira o patético. Aí, temos que recorrer a sinônimos para substituí-lo, mas que muitas vezes perdem em significado. Sou dos que acham que a comunicação é algo tão delicado e passível de tantas variáveis de interpretações que a língua, a importância dela, se dá na medida em que consegue transmitir algo, o que se quer, nem que seja pedir um cachorro-quente em Kuala Lumpur. Lograste comprar teu pão com salsicha na Ásia? É o que serve.

Mas devemos ir muito além. Preguiça intelectual rouba o tônus da vida. E busquemos, obstinadamente, concisão, simplicidade, graça (não eu, evidentemente, este incorrigível verborrágico). Miremos em Veríssimo (Luiz), acho eu, o texto mais bacana do jornalismo (por concisão, simplicidade, graça). O chato é que não me lembro agora de quem ele é filho. Por fim, a propósito do que pode/o que quer esta língua, gostaria de pedir ajuda a vocês desta iluminada esquina na solução de um enigma que me atormenta há quase três décadas: a tradução (livre que seja) em português da letra de Álibi:

havia mais que um desejo
a força do beijo
por mais que vadia não sacia mais
meus olhos lacrimejam seu corpo
exposto à mentira do calor da ira
do afã de um desejo que não contraíra
no amor, a tortura está por um triz
mas a gente atura e até se mostra feliz
quando se tem o álibi
de ter nascido ávido
e convivido inválido
mesmo sem ter havido

Em não me ocorrendo despedida mais original,
Um beijo no coração de vocês.
Albuquerque.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Pedir desculpas não resolve mais! – Por Susanna

Semana Farta. Pra minha felicidade! Os textos começaram a chegar ainda no domingo, com o Visconde e suas relíquias... Depois, Nine fez de nós confidentes. E, pasmem!, no mesmo dia recebi da Susanna este relato que vem a seguir. Sinto-me honrada de que tenham correspondido ao meu convite com tanta generosidade. Puxei minha cadeirinha, guardei meus alfarrábios e coloquei-me a escutar. E já vou avisando: há mais um texto do Visconde no prelo. Sai amanhã, em edição extra, ok?

Um beijo,
Guilhermina


Queridos,

Há já algum tempo venho procurando pensar numa temática interessante para trazer aqui à Esquina, mas nada suficientemente bom – de acordo com os meus parâmetros perfeccionistas – me ocorria; nada no campo das contemplações, melhor dizendo, posto que imaginação tenho à cântaros. Entretanto, eis que hoje, dia 11 de março, vi-me envolvida numa situação que beira o absurdo. Tanto que, imbricada à proposta dessa “roda”, cabe perfeitamente como proposição para o meu texto. Convido-os, portanto, para que puxem suas cadeiras, ou almofadas se preferirem, mas fiquem confortáveis: o texto é longo, mas o assunto é interessante!

Nessa quarta-feira tive um encontro com o meu pai. Sim, há cerca de uns 4 ou 5 anos passei a ser “filha-de-pais-separados”, o que encaro numa boa. Lógico que toda a separação é problemática, e sempre ficam, na melhor das hipóteses, algumas cicatrizes. Tenho cá eu as minhas; e a distância do meu pai é uma delas. Pois sim: encontramo-nos hoje! Que alegria! Meu pai é ser humano cheio de problemas. No entanto é leve – e isso nada tem a ver com ser calmo, ou paciente. Somos, nós dois, detentores de pavios muito curtos. Mas meu pai existe como figura pouco carregada de tensões; erra e permite-se aprender; pede perdão; é humilde e consciente de seu potencial; tem muitos defeitos, muitos mesmo, mas muitas qualidades admiráveis. E depois de quase um mês, estivemos juntos novamente.

Tomamos nossa bebida preferida juntos: café. Conversamos sobre nossas vidas, empregos, algumas coisas do mundo, e sobre minha mãe. O tempo era curto – eu em horário de trabalho, agradecida a Deus por ter concedido ao meu chefe níveis suficientes de benevolência para me permitir ausentar do escritório durante 40 minutos; meu pai tinha outros compromissos marcados ainda para aquela manhã – e não dava tempo de ter tempo com ele. Vida que segue. Ele pagou o café e nos dirigimos ao ponto de ônibus mais próximo, a fim de que ele tomasse a condução de volta pra sua casa.

Nesse momento, ainda envolvida e perdida em saudades – que não têm só a feição de hoje, antes carregam a imagem da menina que, aos cinco anos, esperava, com os grandes chinelos dele nas mãos, o pai chegar do trabalho; ou uma de que gosto mais: a da filha amada, que ouvia, com um sorriso nos lábios, o “minha princesinha” dedicado a qualquer motivo que revelasse ter muito mais desse pai, do que só o sangue que lhe corria nas veias –, gesticulei expansivamente, como me é característico, abrindo os braços pra apontar qualquer coisa sobre a qual conversávamos.


O meu mundo parou. Esse mundo fantástico que tinha a ver comigo e com o meu pai, apenas, parou. Sem querer o meu gesto com o braço foi parar no rosto de um senhor, que passava na rua, justo nos meus 40 minutos com o meu pai. O que ele tinha de fazer ali? Invadiu o meu espaço, e ainda trouxe consigo todo o peso da realidade de uma vida sem magia e gentileza. Ofereci, como manda a boa educação, um pedido de desculpas pelo incidente. Mas àquele homem isso não servia.


Depois de conter todos os muitos, suponho eu, impropérios que lhe vieram à boca (deixando escapar um, que ouvimos – eu e meu pai), esse homem pretendeu seguir seu caminho, e sem aceitar o meu pedido de desculpas, o que me ofendeu profundamente. A despeito disso, relevei a atitude dele, pensando que cada um tem o direito de reagir da maneira que lhe couber melhor nesses casos. Mas meu pai, como eu, tomou aquilo por absurdo e não tolerou a atitude do tal senhor, saindo em minha defesa. Nada de mais: apenas fez uma cara feia das boas, e cruzou os braços em reprovação.


Esse homem, ao ver isso, colocou-se agressivamente diante do meu pai, entendendo que ele nada tinha a ver com o que havia acabado de acontecer – acredito que ele não tenha percebido, mas era O Meu Pai que estava ali, não um homem qualquer, como ele. Vivemos momentos de tensão. O homem me acusava de ter-lhe dado uma “bolacha” (!), eu me desculpava mais algumas vezes (o que não surtia efeito nenhum àquela altura), e meu pai cobrava energicamente que aquele aceitasse o meu pedido.


Tentando manter a calma, consegui contornar a confusão chamando a atenção do meu pai para mim, e gesticulando para o homem, de maneira que ele entendesse que precisava seguir, e deixar-nos em paz! Despedi-me do meu pai, e voltei ao trabalho. Fiquei pensando em como as pessoas andam à flor da pele. Tão egoístas, e, nesse sentido, detidas apenas em si próprias e no que lhes tira a paz, que são capazes de oferecer resistência a um pedido de desculpas. Será que ainda há possibilidade de retornarmos ao lado da história onde pedir desculpas resolvia esse tipo de atrito, tão pequeno, ou teremos que ficar com essa face da moeda?


Pois bem, eis aí o relato sobre o dia em que descobri a medida da ineficácia que um pedido de desculpas pode assumir atualmente...



Aos que me acompanharam, meus agradecimentos! Sei que falo demais... Por isso, desculpem (acredito que este pedido ainda sirva a vocês..rs..) minha prolixidade.


Beijos e até a próxima!

Susanna



quinta-feira, 12 de março de 2009

ela é um quadro de Rembrandt: mestre do claro-escuro - por Nine



Nem sei por onde começar a descrever o quadro... Tudo que me chama a atenção é a solidão, a dor, um choro alto de soluçar que quando acaba ficam as lágrimas a escorrer como pérolas lentamente pelo rosto dela. Ela nunca as seca. Fica parada olhando o vazio. Vai para terras distantes. Terras que não existem mais, como Atlantis naufragada. Mas ela, como um catavento se movendo em todas as direções interiores, vai para lá assim mesmo. Só encontra dor, desalento, agreste, terra rachada e infecunda.

Ela não tem escapatória, aonde ir buscar aconchego, parece um animal ferido acuado sufocando sem conseguir gritar. E também o que adiantaria gritar?...

Não o traria de volta, não apagaria a dor, a tristeza, a rejeição, a traição, a crueldade mesmo do abandono. Virou um cão sem dono. Nem vira-lata é, porque não anda por ai perambulando livre e se divertindo a mancheias em camas alheias. Só fica ganindo no seu canto escuro. Às vezes ela vê umas luzes. São afetos, são filhos, são amigos novos e velhos. Mas logo tudo fica escuro de novo...

Sua vida agora é uma pintura de claro-escuro. Bonita e profunda. Companheira de Gericault, louco e desesperado, vivendo numa bolha patética e de intenso sofrimento.

Acabou o tempo de amor, harmonia, de frissons de volúpia, de risos e de aconchego. Que também só existiam para ela nos últimos tempos com ele. Para ele, já tinham acabado mesmo quando ele ainda estava lá... Ela não percebeu...

Os lamentos dela, nesse país estrangeiro que virou a sua vida substituíram seus sonhos. Viraram pesadelos. Acho que por isso ela não dorme, tem medo dos sonhos-pesadelos...

Baudelaire, seu poeta predileto, escreveu que tinha que acreditar no diabo porque o sentia nele. Ela acha que ele vive escondido na sua casa. Nem S.Miguel de quem ela era tão devota, a livra desse tormento. Angústia e solidão, esses sim, os verdadeiros diabos!

Ela queria a expiração dos temores, do ressentimento, da mágoa e principalmente da dor. Queria um novo amor, pelo menos paz. Ser uma alma atormentada é tão exaustivo...

Ela acende velas para sair da escuridão, mas elas logo se apagam. A luta anda desigual. O pedaço dela que ficou nele, o futuro juntos que se perdeu, como restabelecer, se regenerar ou criar outro?

A aposta enorme que é amar o outro é muito arriscada, só para muito corajosos. Porque nós sabemos do nosso comprometimento, mas nunca sabemos realmente o do outro. São os gestos, as atitudes do outro é que vão demonstrar, não as palavras. Às vezes não ficamos muito atentos, é a vida para levar... Não enxergamos bem o outro, ele também dissimula, torna mais difícil esse caminhar juntos.

Nossas almas são tão frágeis, se quebram facilmente. Mas ela ainda não desistiu. Ainda vai continuar a procurar a razão dela de conjugar o verbo AMAR. Com todos os riscos e aventuras decorrentes... porque seria mais insensato não pensar nessa possibilidade.
dedicado a Rainha Guilhermina e a Bailarina Suspensa,
duas novas luzes na minha escuridão.
Bjs afetuosos.
Nine