terça-feira, 28 de abril de 2009

apesar de você, amanhã será outro dia - por Nine

Quinta-feira, ao final da tarde, meus últimos hospedes se foram. Hoje depois da academia, café com as amigas e o professor, vim para casa fazer meu almoço. Coloquei minha identidade secreta de "supermaria" e como não tinha trabalho remunerado; fui limpar meu apartamento. Varrer, passar pano, lavar e pendurar roupas, passar enceradeira (trabalhos arcaicos...). Não escutei música, resolvi ouvir o silêncio. Pensar, refletir. Sobre as visitas dos últimos; as conversas; o saldo positivo e negativo desses reencontros familiares, das coisas que aconteceram aqui em casa, no bairro, na cidade, no país etc... é assim que abro e fecho as gavetas da memória, por compartimentos, do menor para o maior (a imagem das gavetas é da bailarina Susanna).


Concluo que, apesar de tudo, diria como o pai do Balzac, fort comme un arbre, beau commme marbre. Não que eu esteja sendo pretensiosa não. “Bonita” aqui é no sentido de estar bem, apesar dele, dela... de qualquer um ou uma que se interponha. Vou resistindo, apesar do choro, da dor, da mágoa. Fiz amigos novos, tenho feito exercícios regularmente, vou caminhando.


Tomo cuidado para não calar meus sofrimentos, para não comprimir meus sentimentos, senão serei traumatizada a vie!


Quando estamos sós, devemos ter cautela para não confundir estar solitário com ser egoísta. A semelhança às vezes é grande. Começamos a ter hábitos que viram manias e no futuro podem nos predispor ao isolamento, a não suportar a presença de um outro.


Uma tristeza fica impressa no rosto, de tanto viver de capitulações e frustrações cotidianas. Faz-se necessário travar um combate contra esses sentimentos de abandono, rejeição e melancolia que nos acomete. Não me entendam mal, de vez em quando dou pity-party fabulosas. Mas são como uma rave, só duram 24Hs Depois desse prazo, me obrigo a sair, a ver gente, a telefonar para alguém. Então começo a emergir de novo. Sem anti-depressivos, de cara limpa. Dia 30 de abril fará 1 ano e 3 meses do fato que se abateu sobre mim. Fui fundo dessa vez, em regiões abissais. Mas estou começando a subir, com falta de oxigênio, mas subindo, inexoravelmente...


Tenho contado com a bondade de estranhos. Ao contrário de Blanche du Bois, nunca contei. Mas os estranhos tem sido melhor e maior alento que os outros.


Se escrevo esse meu folhetim, sem nenhum pudor ou pretensão, é para que possa servir para outros e para minha própria constatação. Como um relatório da alma: para outros não se sentirem tão sós, tão desamparados, in HELL!


O inferno, na maioria das vezes, está em quem está ao nosso lado. Havíamos abraçado o capeta. Outras vezes, dentro da gente mesmo. Não importa! Saia de lá, peça ajuda, mas saia correndo! Muitas vezes, sozinhos, não dá... precisa-se de ajuda profissional: psicólogos, psiquiatras. Mas tente se ajudar, babysteps, mas vá!


Não pense em ficar logo feliz; bem. Para mim, um dia sem chorar é um dia bom. Uma noite em que dormi, sem remédios 6hs, é um presente. Como uma doença mesmo. Precisamos sair da UTI, ir para o quarto de hospital, sair do hospital, ir para casa, estar convalescente... etc, até estar curado. Não queime etapas, as fases são necessárias para a doença não voltar. Perderá amigos (?!) nesse percurso, ganhará outros. Dê uma chance para você e para os outros.


Um ser sem paixões, amor e sofrimento designam bem o termo, é um monstro, ou um santo. Mas não é humano. Algumas pessoas tem esse destino fatal, ou o forjam, não tem paixões. Não sofrem, não morrem, nem vivem de amor. Dizem que ficam bem sozinhos... Não os invejo, não.


Quem tem uma alma como a minha, sonhadora, lírica, amorosa e delicada, mas forjada em aço, forçada a viver sem amor, vai se desesperar. Ou lutar até encontrar de novo um amor, ser correspondida e renascer de novo. Questão de escolha. Sejamos fênix!


beijos à rainha Guilhermina e ao povo da esquina

Nine de Azevedo

sábado, 25 de abril de 2009

o que é isso, companheiro? - por Visconde de Albuquerque

Prendas minhas,

Como escrevi sobre Roberto na semana passada, minha alma encheu-se de júbilo ao deparar-me com um Segundo Caderno do Globo inteiramente dedicado ao rei. E, por coincidência - coisa que, acredito, não existe -, recebi por e-mail, sem que eu tivesse solicitado, sua biografia, essa que ele, lastimavelmente, impediu de circular. E estava este vosso companheiro de navegação a buscar refúgios doces para retemperar o espírito entregue aos negócios de petróleo&gás, quando, movido pelo que alegremente constatei ser uma paixão comum, resolvi visitar o blog de Leila Pinheiro. Ah, amadas, e o que encontro naquele jardim? A tão comentada nesta esquina entrevista de Nélida Piñon ao Globo! Era Leila, como sempre, mais uma vez a recomendar diamantes! Mas que belas conspirações do universo! Nem a derrota do Botafogo no domingo conseguiu abalar-me, pois que na sala em frente à tela onde víamos o jogo espalhava-se sobre o chão um arsenal de pedrinhas e utensílios plásticos de cozinha, misturados a bichinhos, para brincarmos com minha afilhada - ainda tão bebê - e fazê-la feliz.

Corria assim leve o tempo, quando chega o envolvimento de Fernando Gabeira na farra das passagens aéreas. Vós bem sabeis que, à maneira de Eremildo, de Gaspari, sou um idiota. Tanto que, conforme relatei nesta esquina recentemente, fui um dos que deixou de viajar à Ilha de Caras num final de semana para votar no nobre deputado para prefeito. Pois, garotas, como me arrependo agora dos mergulhos que deixei de aproveitar em Angra, na companhia de gente que morreria de vergonha de embarcar um filho para fazer turismo à custa do erário. Gente que trabalha com dignidade e que não se autointitula o último baluarte da ética entre os podres poderes. O mais triste é o cinismo das argumentações do companheiro, que aqui não reproduzo por embrulhar-me. Estão às fartas nos jornais e devo poupá-las de uma indigesta segunda leitura.

Coisa tão, mas tão infeliz, que, idiota qual Eremildo, vou fazer de conta que o tempo congelou nas fotos que tiramos domingo com a pequenina Cacaia brincando no tapete ao redor de bacias, escorredores e funis. Dito isto, nada me ocorreu senão sugerir-lhes uns miminhos para aguçar os sentidos combalidos pela aspereza dessas que só podem ser puras invenciones da imprensa que, segundo ACM Neto (também tripulante da farra), quer fechar o Congresso. Vamos lá:

A canção "Antinome" - Piruetas poéticas de Chico Cesar em melodia primorosa, + a participação de outro Chico, o ardosiano Buarque (para que vocês não me acusem de só amar o rei R. Carlos). http://app.radio.musica.uol.com.br/radiouol/player/frameset.php?opcao=umamusica&nomeplaylist=006953-0_02<@>Respeitem_meus_Cabelos,_Brancos<@>Antinome<@>Chico_César<@>0330<@>Chico_Buarque/Chico_César<@>ABRIL<@>MZA
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O DVD "Les uns et les autres", de Claude Lelouch, que aqui recebeu o pobrinho título de "Retratos da vida". O diretor francês estava em estado de graça ao realizar esse filme deslumbrante, que se passa em quatro países, Rússia, França, Alemanha e Estados Unidos, e mostra o período americano das big bands, a ascensão de Hitler, a perseguição aos judeus na França e sua deportação para os campos de concentração, a batalha de Stalingrado, o desembarque na Normandia, a libertação de Paris. Não há cena mais bonita nesse mundo do que a de um Jorge Donn arrasador no bolero de Ravel na noite de Paris.
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E já que acabamos de falar do "Les uns et les autres" (Uns e outros) gringo, temos também o nosso "Um e outro", canção (maravilhosa) de Paulinho Moska: Um fala, o outro escuta Um cala, o outro muta Um grita, o outro olha Um habita, o outro desfolha Um aperta, o outro solta Um liberta, o outro volta Um salta, o outro pousa Um falta, o outro ousa Um atura, o outro devora Um mistura, o outro demora Um corre, o outro estanca Um morre, o outro arranca Um concorda, o outro sabe Um transborda, o outro cabe Um chamusca, o outro congela Um busca, o outro revela Um existe, o outro permanece Um insiste, o outro acontece Um estranha, o outro acostuma Um acompanha, o outro desarruma Um agarra, o outro conquista Um esbarra, o outro despista Um batalha, o outro entrega Um encalha, o outro navega
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O site de Ed Motta (www.edmotta.com)
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Monica Waldvogel - Ah, sei lá...por tudo. A brilhante jornalista anda em fase de especial luminosidade. Não há figura hoje que este vosso amigo mais deseja entrevistar. Pelejarei.

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Uma receitinha (esta vai especialmente para Nine que, como eu, adora cozinhar) - Para colorir o dia ou a noite, é prato fácil, rápido e delicioso. Como acompanhamento, arroz branco simples e salada verde. Harmoniza (parece papo de escola de samba) bem um rosé gelado, que ando cá em fase de rosés gelados. Precedido por um espumante, para dar mais graça aos pãezinhos assados com cobertura de tomate seco, tomate fresco, azeitona preta, alcaparra e pesto de manjericão. A vida é bela!

Camarão Thai: 250g de camarão limpo / 12 cubos de abacaxi / 150 ml de leite de côco / 100 ml de água / 2 colheres de sobremesa de curry / 1 colher de sobremesa de manteiga / Gengibre ralado a gosto / Sal e pimenta (eu ponho a calabresa) a gosto.

Numa frigideira, derreta a manteiga e frite rapidamente os camarões. Apague o fogo e reserve. Em outra panela, esquente a água e o leite de côco com os abacaxis. Deixe ferver alguns instantes e adicione o curry, o gengibre, o sal e a pimenta. Abaixe o fogo, adicione os camarões, completando seu cozimento no molho.

Beijo-vos, rainha e princesas. Liberto-me ficando vosso escravo.
Albuquerque.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

carta aberta à Cora Rónai

Querida Cora,


Ontem, no feriado por São Jorge, o santo do cavalo contra o dragão, quando logo pela manhã encontrei estes porquinhos envoltos em jornal na sua coluna (Cora Rónai - O Globo), não contive a indignação: Pela espada de São Jorge (!) O que haveria de ter feito você, justo neste dia, trocar seus gatos por porcos??!


A primeira página do mesmo jornal já tinha me embrulhado o café no estômago: baixaria e baixeza no Supremo Tribunal Federal; Clero (também baixo!) na Câmara; E bandalha! Muita bandalha nas ruas do Rio. O choque de ordem do mauricinho? Querida, pasme, a bagunça era promovida pela turma do próprio! É!... Sabe o secretário... aquele, o engomadinho, esse mesmo, o que manda quebrar barraco, confiscar camelô e rebocar os carros... Pois é, menina, era o próprio estacionado em fila dupla. Ele e os carros da polícia!... Na mesma página, ainda tinha o homem, o presidente do Paraguai. Não pára de aparecer filho para o excelentíssimo. Eu nem consigo formular qual é o problema no caso. Será que são quantos filhos de tantas mulheres? Ou a questão é que o homem era bispo quando prevaricou? Ou ainda é porque não paga pensão pras crianças, o desgraçado?... Bem, mas deixa esse distinto pra outro dia, que já nos basta os homens daqui pra engraxar, não é, querida?


Voltando aos porcos, os enrolados no jornal... eu quero te falar uma coisa. Amiga, o que é isso de “vergonha na cara”? Essa história, no mínimo denuncia a sua idade! É nisso que dá essa sua mania por gatos... quando o assunto chega no chiqueiro, e lá se vão anos que a gente engorda esta dinastia de suínos, “falta de vergonha” é condição sine qua non. Já faz tanto tempo que vergonha, quanto mais na cara, é tão antiquado, que escapou por pouco desta palavrinha ser excluída da nossa língua, nesta última reforma ortográfica.


Já existe campeonato de “falta de vergonha” – em modalidade coletiva e individual. Não me diga que você não sabia! As regras do tal campeonato são um pouco complicadas para nossas cabeças fora de moda, mas faça um esforço, vou tentar te explicar: o segredo está em desarticular o maior número possível de valores éticos.


Hombridade, por exemplo... Hoje em dia?! É absolutamente démodé. Não convém nem falar essa palavra alto. Pega mal, sabe? Convenhamos, esse negócio de integridade, escrúpulos... aquele orgulho que se tinha em manter seu nome e sua imagem livre de máculas... correção de conduta... dava muito trabalho e pouco retorno...


Outra coisa: Ideologia, não! Pelo amor de São Jorge! Isso não tem mais o menor cabimento! Esquece. Abole. Arquive para sempre. Pra nunca mais pensar sobre isso! Se é coisa de otário? É pior, é coisa de desinformado. E se tem uma coisa para a qual não há perdão nos dias de hoje, essa coisa é a desinformação. Aproveita e descarta junto todo esse lixo, toda essa baboseira de “compromisso com a palavra”, “coerência entre o que se diz e o que se faz” e “servir ao coletivo”.


A vida anda, Cora, hoje o negócio é tendência. Além de te manter up to date, evita essa coisa de isolamento, entende? Mas o que é melhor ainda é que seguir a tendência justifica qualquer coisa: crítica, questionamento ou acusação. Isso mostra seu caráter, ou melhor (jamais use a palavra caráter), sua natureza flexível e antenada com as reviravoltas mundiais. É o coletivo a serviço do indivíduo! Isto sim é que é revolução!


Se pode ser melhor que isso? Só se você criar tendência... Mas aí o negócio demanda além de criatividade, umas doses a mais de cinismo, um estômago blindado pra comer muita “lavagem” e as costas protegidas. Isso você só consegue ou por herança, questão de sobrenome; ou por apadrinhamento. O importante é que para ser vanguarda tem que ter retaguarda. Isso não mudou muito... poder é poder, só ficou mais podre.


Finalizando, minha amiga, pra responder a tua pergunta sobre legalidade e moralidade, é o seguinte: quando se cria uma tendência, ela carrega junto uma jurisprudência, entende? É uma questão de usucapião, de precedentes e maioria... Já quanto à moralidade, coloca também no baú e não fala nunca mais nisso... ofende, é termo militarista... ou coisa de ressentidos, dos que não fazem parte da história... coisa de “coroas”. E, definitivamente, o lado da moeda que hoje ganha o jogo é “cara”, ok?


Beijo,

Guilhermina

foto retirada do blog da Cora

quarta-feira, 22 de abril de 2009

a rotina - por Aderbal

Uma das maneiras de manter disciplinado é criar rotinas. Elas me ajudam a otimizar o meu tempo e a permanecer em linha reta. No entanto, concordo que quebrar a rotina e mudar de direção tem um valor inestimável.

Ainda na rotina, quando me mudei de Botafogo para Vila Isabel, me senti um peixe fora d’água, ou melhor, um peixe saído de um aquário e mergulhado em um novo lago. Bairrismos à parte, Vila Isabel tem muito a oferecer ao novo morador, mas eu precisava estabelecer uma relação de rotina com o meu Noivo-bairro!

O que há de melhor e todos sabem, são os bares e botecos que salpicam entre as ruas e o Boulevard. Aliás, se é chic emprestar dinheiro ao FMI, posso dizer que é chic também ter como logradouro um boulevard.

Daí a estabelecer um passeio pelo boulevard nas manhãs de sábados e bebericar no Petisco da Vila, foi de facílima decisão.

Mas a própria rotina me pregou uma peça. Como de costume, fui à aula de corrida na esteira, uma forma de exercício aeróbico para quem gosta de correr açoitado pelas ordens de um professor.

Naquele dia, das dez esteiras existentes na sala, apenas uma estava ocupada, por mim. Daí, a professora ficou toda atenta aos meus movimentos e, para minha surpresa, me disse que eu poderia escolher a trilha sonora da aula.

Ora, como todas as aulas de academia são feitas sob as marteladas da techno music, resolvi jogar pesado e respondi não acreditar que ela tivesse MPB para colocar. Tal não foi meu espanto, ela possuía em seu Ipod uma pasta com diversas músicas brasileiras, tanto que foram o suficiente para os 40 minutos de aula.

Ao final, a professora veio me agradecer pois aquela havia sido a primeira vez que ela ministrava uma aula com MPB e que, após 5 aulas consecutivas com música eletrônica, ela se encontrava em total tranquilidade para encerrar seu dia, satisfeita e feliz.

Que Elisa Lucinda não me leia, mas às vezes, falar mal da rotina nos dá chance de vivenciar um dia novo.

Aderbal

domingo, 19 de abril de 2009

entre hiatos

Alguém que me é muito caro um dia me disse ...eu vivo a contragosto... Não era um lamento. Era constatação. A vida lhe doía com sua permanência, sua insistência em amanhecer.

Hiato

Recentemente, sentada aqui, nesta mesma cadeira, de onde navego aparentemente sem sair do lugar, esta afirmação, uma das mais doloridas que já testemunhei, voltou à lembrança como se a ouvisse de novo, naquele exato momento. Mas quem era que agora me dizia?

Hiato

Outro dia, num blog, o autor fazia referência a uma tal “inveja branca”..., que outros chamam de “invejinha”. Logo depois, em meio a um acesso meu, de zanga e indignação, meu interlocutor comentou, assim como quem não quer nada, que “aquela raiva era santa”... Ora, minha inveja é roxa, minha raiva é vermelha e meu medo é (e faz tudo) cinza! Sem diminutivos nem disfarces. Os de vocês, não?

Hiato

Na internet, não se caminha, não se passeia, não se transporta... se navega. Esta imagem sempre me traz uma sensação de desorientação. De estar à deriva, sem bússola, sem ruelas, sem sinais. Uma ausência de esquinas, justo destas que tem a função de orientar-me para leste ou oeste, norte ou sul. É claro que me aventuro, muitas vezes sem direção. Mas possuo um bloco de notas onde registro endereços e atalhos como quem constrói seu próprio mapa. É preciso saber aonde, para poder voltar. São necessárias as rotas para poder seguir.

Hiato

Seguindo setas alheias, cheguei sem aviso à casa de Lua em Libra. Destaco duas publicações que encontrei ali naquela praça: Nem e Eu estrangeira, as quais li e reli muitas vezes, como quem volta ao mesmo banco da praça, para observar o burburinho e as copas das árvores. Não soube o que buscava naqueles dois bancos da casa de Cecília, a autora, a dona das redondezas. Como ela, estrangeira, ousava vasculhar-me as entranhas como um robô laparoscópio? Entrando por minhas fendas, invadindo as vísceras... Como ousava, à distância, identificar minhas cicatrizes de não esquecimento?

Dizem que o inconsciente guarda tudo o que não podemos lembrar, pelo tanto que dói e, ao mesmo tempo, não podemos esquecer, pelo tanto que importa. Como ousou Cecília, a estranha; deixar exposto assim o que nem sei (que sei), mas não esqueço. E pior: avisar-me, prenunciar meu medo!? Exigir as costuras dos hiatos até à resposta. Que há de não ser somente entulhamento, um disfarce, uma meia verdade que inscreve a mentira inteira, onde me escondo.

Odiei Cecília, a quem sequer conheço, por ousar saber de mim sem nunca ter me visto e ainda me emprestar as palavras das quais me esgueirei nos últimos anos, com esmero e atenção. Como ousa ela me contar em primeira pessoa, como quem fala de si? São delas as palavras que desprezei como minhas, as que não quis e evitei. Mas, se são dela, como podem doer em mim?

Querida Cecília, isto é resposta. E sobre esta resposta ainda cabe mais uma indagação: então não é a arte a maior de todas as interpretações? Posto que desconhece sempre a quem se dirige... será sempre àquele a quem toca, como carícia ou tapa na cara. Então lhe agradeço, Cecília, foi a tua casa o meu farol, em pleno mar aberto.

Beijo,
Guilhermina

Foto de Cecília Cassal do blog Lua em Libra

sábado, 18 de abril de 2009

histórias mínimas - por Nine

Minha companheira de academia e amiga, Rose, convidou uma moça japonesa que faz aulas conosco para tomar um café. Fazemos isso umas duas vezes por semana, tomar café, não convidar moças japonesas. A Cle também foi. A Rose a convidou porque a Riiko não falava, só dava lindos sorrisinhos para nós.


Nós, as outras, falamos, rimos, reclamamos e claro, fazemos ginástica também!Descobrimos que ela tem esse lindo nome, Riiko, que fará 39 anos esse ano (não parece, tem uma pele!...), que tem uma filha de 4 anos, que esta há cinco no Brasil, é tímida e fala pouco português, mas quer aprender! Fiquei pensando como ela deve ter vivido isolada durante esses anos todos. Mas também como ela é corajosa de se matricular na academia quando não fala bem a língua... Fiquei pensando como somos hospitaleiros, talvez por preguiça e ou lassidão, como escreveu o Marcelo Coelho, no blog cultura e crítica, sobre um doc contando a vida de Palestinos vindos para o Brasil .


Não imagino a cena do nosso café, envolvendo uma paulistana, uma japonesa, uma paulista de Botucatu e uma carioca num outro país. No dia seguinte, a Rose não foi à aula, e foi a minha vez de "apresentar" a Riiko ao professor e as outras alunas. Fui logo falando essa é a Riiko, ela tem 39 anos (todos: Nossa! Até o professor!), uma filha de 4 anos e quer aprender português. Vamos ajudá-la! Demos beijinhos, o que sei, não é comum na cultura japonesa, mas com 5 anos aqui, ela já deve ter percebido que a maioria de nós brasileiros, gostamos de tocar as pessoas.


Fui falar com outro botão (daqueles que a gente fala em pensamento) lembrei do que a rainha Guilhermina escreveu sobre o Nós, eu...


Todas nós ficamos visivelmente contentes na confraria feminina. Rimos, falamos de dieta, filhos, línguas, aprendizado, homens, parece anúncio da Marie Claire: desde meia desfiada até política monetária! Ai lembrei do que escreveu o Visconde sobre homens gostarem da companhia de homens; e mulheres da companhia de mulheres. Rose e eu nos despedimos das outras e fomos descendo a rua, passamos na Sainte, noutra padaria perto de casa da qual gosto mais do pão, e encontramos a Rita Lee tomando café. Fizemos um air bien blasé e só olhamos discretamente para a Rita, que não é a Ludolf , e continuamos na entrada da padaria conversando, agora só nós duas.


Falamos sobre uma cápsula do tempo que me apareceu através de minha filha mais velha na véspera. Retratos e uma carta de um ex-namorado da minha juventude, que ela achou numa caixa na casa da irmã do meio. Foram remetidas a mim, há 4 anos, mas minha mãe resolveu não me entregar... E ainda fez de conta para ele, que mora ai no Rio, que ia me entregar: mentiu para ele e omitiu para mim... Provavelmente nunca saberei, nem ele, o que poderia ter acontecido se eu tivesse recebido essa carta e essas fotos. Nela, dizia que estava divorciado, que o casamento dele não tinha dado certo porque, no fundo, ainda era apaixonado por mim, desde os seus 20 anos... Minha vida às vezes parece um folhetim, até a Susanna bailarina, girassol do Visconde, entrou nessa ciranda, tentando me ajudar a achar o cep e ou telefone do moço do retrato. Foi em vão, mas Susanna, Rose e minha filha mais velha foram todas solidárias no caso do moço do retrato.


Vocês devem estar se perguntando o que essas estórias tem a ver umas com as outras.?!! Na verdade quando comecei, pensei numa crônica simples, mas agora os vou deixar que tirem suas próprias conclusões. Que usem uma lupa nesse micro fragmento das nossas vidas e ampliem os detalhes. Pensem nas atitudes que vocês tomaram nas ultimas horas, nos últimos dias, nos pequenos gestos, mas que podem alterar para sempre a estória de alguém...


beijos para você, amada Rainha, para Susanna e para o moço, não mais tão moço, do retrato

Nine de Azevedo

sexta-feira, 17 de abril de 2009

bonito como a cara do meu filho: Tempo - por Visconde de Albuquerque


Guilhermina amada,

Ainda estala na memória de minhas pupilas gustativas as iguarias de tua casa. Que almoço sublime de Páscoa! Desconhecia essa faceta da feitura de tão inebriantes sabores pelas mãos de Rita. Por Camões, hei de sonhar com aquele esplendor de bacalhau por séculos afora e Tejo adentro! Os camarõezinhos tenros, os profiteroles, tudo sabendo a carinho e esmero. Entre os comensais, peço vossa permissão para destacar a presença do príncipe Felipe. Como anda forte e belo esse rapaz! E, como não poderia deixar de ser, o nosso nobilíssimo Ataulfo e sua imperturbável senhora. Ah, que enlevo compartilhar a serenidade de D. Flores, sua fala mansa, pausada, capaz de pacificar os espíritos mais empedernidos. Quanta cadência ao expressar seu pensamento sempre equilibrado, tecido na malha suave de comedimentos e ponderações. Uma criatura verdadeiramente temperada na placidez e que a todos envolve em seu manto apaziguador.


Creia-me, amiga, foram momentos tão deliciosos que já deixei vossa casa com vontade de voltar. O ambiente familiar, tuas (crescidas, né?) crianças lindas - mais a de D. Flores -, com quem tanto brinquei nem tanto tempo faz assim, a emitir opiniões, seres em expansão. Logo pensei: como não fazemos mais isso? Por analogia, lembrei que dia desses andava eu com a alma em turbulência, quando, de súbito, recebo o convite para almoçar em casa de uma amiga. Seria almoço, em plena terça-feira. Logo eu, trabalhador respeitabilíssimo de uma quitanda que abre cedo e nunca tem hora pra fechar??? Pensei, pensei, e por que não? Obrei qual um mouro de forma a dar conta antecipadamente das demandas sem fim, para que pudesse ter o gostinho de uma travessura tão rara, uma...escapada... Desejei permitir-me. Sabe assim, como resumem por aí? Nunca dou-me a isto, cáspite!


Comprei uma casinha com biscoitos amanteigados para dar de presente à princesinha da casa, filha da mulher de minha amiga (infelizmente, as duas estiveram ausentes). Fechei a vendinha e corri a Copacabana, levando uma garrafa de vinho. Ah, que tarde...O gostinho da gazeta e a conversa que fluía no apartamento calmo, com uma surprendente mata por cenário, nós dois, pelo tempo em que não nos víamos, tão sinceramente interessados na vida um do outro. A comidinha deliciosa (casa com criança sempre tem comidinha deliciosa)... Mas, logo uma ligação me fez retornar à quitanda e às obrigações. Despedi-me sem ver as outras duas queridas. Ao regressar à bat-lojinha - bendito sejas Tempo -, outra ligação relançou-me ao mundo das delícias pequeninas, imensas, sem preço. Era Mimi, a garotinha com quem eu adoro brincar no mar, me agradecendo o mimo do biscoitinho. Essas ternuras vieram somar-se à linda surpresa de meu filho vir falar comigo no MSN, com as letrinhas indecisas de seus nem 8 anos, a dizer que estava com saudades. Momentos assim... ah, momentos assim, atormentam-me com o que faço em relação ao tempo. Que deixo de viver com os que amo.


Sob este tema fascinante, o do Tempo, muito se têm ocupado - e com que propriedade - as Artes. Algumas viagens encantadas:


1. O estupendo livro Sonhos de Einstein (Companhia das Letras), uma coleção de fábulas incríveis de Alan Lightman.


2. O filme O estranho caso de Benjamin Button.


3. O poema de Hilda Hilst:


Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.


Vivida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.


Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas?
Tempo.


Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.


4. A linda canção Tempo afora, de Fred Martins (http://b.radio.musica.uol.com.br/radio/index.php?ad=on&ref=Musica&busca=Tempo+afora&param1=homebusca&q=Tempo+afora&check=musica&x=30&y=9)

Como vos agradeço nosso encontro, querida, ansiando por mais momentos de calor! Para todos.


Abraços do amigo.

Albuquerque

terça-feira, 14 de abril de 2009

nós - muito mais do que eu e eu

O poeta mandou a letra. Ela colocou a música.O encontro estava marcado: dia de ela apresentar-lhe a nova parceria. Cantou até o fim. Ele, em silêncio. Ela cantou mais uma vez e só então ele falou: O estranho é que eu vejo a mesma imagem (que eu escrevi), mas parece que é de outro ponto de vista.

Tenho adoração pelo direito inviolável de todo e qualquer um olhar a mesma coisa, direção, ou seja lá o que for, e vê-lo no singular do seu ponto de vista. Aquele que lhe é conferido pelo seu arsenal de possibilidade, que se debruça sobre um ponto externo, mas só ganha existência na retina que lhe é própria. E única. Nada é inteiramente seu, meu ou de terceiros. Apenas a parte que lhe cabe pela sua condição de reconhecê-la a partir do que suporta e anseia. Cada coisa só existe pelo sentido que ganha de você, de mim ou de quem a vê. O que lhe é banal pode me parecer lindo, ou ainda imprescindível; assim como o que me é maravilhoso pode lhe ser absolutamente indiferente.

Se lhe profiro uma verdade qualquer (que só pode ser a minha) é inteiramente seu o dom de fazê-la plena de sentido ou impregnada de tantas reticências que sequer mereça seu crédito. É, cada vez mais, esse lugar a posteriori que me fascina. Este que é o outro que emprega valor ao que quer que seja feito, dito ou realizado. Sim, estou cada vez mais convencida de que a arte (e, portanto, a existência) se faz no ouvinte, no expectador, na resposta causada.

Quanto mais acostumados ficamos à cultura do “eu, por mim mesmo”, “eu que me basto”... mais caminhamos na direção da nossa nulidade e encerramento. O que esta política do individual nos rouba, enquanto nos quantifica com os números do resultado, é nossa qualidade humana, dotada de desejo, falta e nome próprio.

Quando a palavra daquele poeta ganha para ele um outro sentido, nos acordes que lhe destinam a cumplicidade da parceria, ele, antes autor, é obrigado a ouvir a si mesmo de novo, no deslumbre do encontro com o outro. Naquele “nós”, seu pertencimento se revigora num entrelace onde a poesia vira música. No compartilhamento da co-autoria, as palavras, antes suas, ganharam um estranhamento que o obrigou a indagar-se o que foi que eu disse?

Nada assim tão incomum. É no efeito do que dizemos ao outro, efeito que pode ser de aceitação ou recusa, que somos obrigados à renovação pelo benefício do encontro possível.

Ou não. Também é uma escolha, e como tal legítima, a ratificação daquele primeiro conteúdo e forma, sem destinar-lhe retoque ou lapidação... e o encontro que se dane. Entretanto, vale saber: a solidão é um direito inalienável e uma condição inerente à existência, mas distinta da sozinhez – esta, apenas um eu embriagado.

Beijo,
Guilhermina

sexta-feira, 10 de abril de 2009

rainha e rei: vale tudo! - por Visconde de Albuquerque

Queridas amigas e amigos desta esquina,

Junto-me, ainda que tardiamente, às indignações de Nine e Guilhermina nas postagens recentes sobre o suposto tratamento para reversão da homossexualidade. Nada sou capaz de acrescentar ao que vocês escreveram sobre tamanha barbaridade. Céus! Como as questões relativas à sexualidade ainda causam incômodo entre as gentes modernas! Neste sentido, gostaria de partir célere para a abordagem de algo neste campo - sob perspectiva diametralmente oposta aos dos caçadores de escuridão, por favor! - que há muito me intriga.

Tenho para mim (oh, se perde na noite dos tempos o desejo de começar um período com "tenho para mim" - uma tese. Polêmica. Assaz polêmica, reconheço. Tanto que não sou tolo o suficiente a ponto de arvorar-me a defendê-la em praças públicas indistintamente, pois que não tenho vocação a pária. E apavoram-me ambientes hostis. Mas aqui, neste fórum privilegiado, e sob a proteção de damas tão acolhedoras, encorajo-me. E sou todo ouvidos para as vozes discordantes.

Pessoal querido, não sei não, mas tenho para mim que homem gosta de homem e mulher gosta de mulher. E isso nada tem a ver com opção sexual. De há muito observo as gentes, até por força do signo: o verbo do sagitariano é (eu) olho. Ao longo da vida, conto nos dedos as vezes em que vi um casal, dito heterossexual, que de verdade apreciasse a companhia um do outro, com alegria, entusiasmo, curiosidade pelos movimentos interiores do (a) parceiro (a). Por ventura, garotas queridas do blog, já registraram uma mesa com dois rapazes calados? E com duas meninas? Falam, falam, pelos cotovelos, riem, divertem-se, cúmplices. Há euforia verdadeira entre os de mesmo sexo. E quantas duplas formadas por um X e um Y vocês já testemunharam em um restaurante que lhes fizeram uma múmia parecer muito mais animada? Aposto que milhares. É um tal assunto, uma tal vivacidade entre homem e homem e entre mulher e mulher! Por Freud! Como se sentem à vontade ao lado de seu/sua igual! Quero crer ("quero crer" é outra expressão a povoar meus sonhos desde menino) - que, à parte a hora das "saliências", como diz Ancelmo, parece que vibram mesmo é com a proximidade de seus pares.

Oh, que assertiva mais doidivana, não? Desconfio que mesmo eu, que sou espada (há controvérsias), estou a precisar de um homem pra chamar de meu. Nem que esse homem seja a Marina Lima. E agora vou, porque, além de aprender inglês, preciso ouvir aquela canção do Roberto, este grande cronista musical de uma época. Enquanto o denso Buarque estava às voltas com a banda que passava, a janela de Janaína, a ladra de sorrisos e assuntos Rita e o samba que saía procurando você na noite dos mascarados, o rapazinho de olhos fundos de Cachoeiro de Itapemerim cometia incorreções terríveis. Amava loucamente a patroa do próprio amigo, queria que tudo fosse pro inferno, atribuía à estupidez da pretendida não conseguir enxergar-lhe o amor e ainda avisava ao bicho da vez que, para ficar com ele, teria que mudar e aprender a ser gente. Da mesma forma, o cabeludo apolítico disse ao Brasil, em plena ditadura, desejar que os pés do filho cantor de D. Canô, então exilado em Londres, voltassem a pisar a areia branca da Bahia. Um corajoso precursor da anistia! Enquanto Chiquinho, em mais uma de suas interpretações da alma feminina, advinhava que a mulher, sim, ia gostar que ele chegasse em casa com um bando de amigos sedentos e famintos para conversar (e que ela ia adorar esquentar a barriga no fogão tacando paio na feijoada e saltando cerveja e caipirinha para um batalhão), Robertinho matava até trabalho para ficar na cama com a amada, com direito a jantar e café da manhã! Se o politicamente correto Chico devotava-se à linha de montagem do ABC, o caretíssimo rebento de Lady Laura atormentava-se, autoindagando-se, socialmente inadequadíssimo: "será que tudo que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda"? Sem contar que o Rei fez Nossa Senhora, uma canção que...

Rainha, não resta dúvida: este teu amigo mamão é papaia! este Clark é Gable! este caminhão é patinete! Acho que, como Hebe Camargo, tenho tesão em Roberto. É que quando eu estou aqui, vivo esse momento lindo. E, a exemplo de teu companheiro de realeza, quero ter um milhão de amigos. Com essa gente linda de tua esquina, tenho tudo para alcançar a ambiciosa meta.

Do teu,
Albuquerque Carlos.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Hanna e a outra Hanna


Eu e essa triste mania de andar um passo atrás do tempo. Admiro um bocado essas pessoas que estão sempre antenadas e em dia com o que está acontecendo: são as primeiras a verem os filmes que acabaram de entrar em circuito, já leram até o que eu achava que estava no prelo. Viram todas as peças de teatro em cartaz... e descobriram aquela nova música que quase ninguém conhece ainda. Eu estou sempre esperando que passe o frisson, que mais ninguém esteja prestando atenção naquele título e que a assessoria de imprensa dê por encerrado seu trabalho de lançamento do produto. Aí é que vou procurá-lo. Aí é que vou investigar meu interesse por ele... Por isso mesmo, não sou uma boa conselheira de tendências, nem do restaurante da moda, nem do que vem para as vitrines na próxima estação. Eu sempre preciso de silêncio para ver ou escutar o que quer que seja... O burburinho, os mil comentários sobre o mesmo assunto me atordoam. Não foi diferente com o filme “O Leitor”. Só o vi nesta última semana...

E, quanta emoção!

Nem vou discursar sobre o trabalho de Kate Winslet. Todo mundo já falou sobre tanta dureza em tamanha fragilidade...

O que poucas vezes vi foi o amor encontrar história tão triste. Uma história em que ninguém se salva, mesmo que ele (o amor) resista o tempo todo. Quem é Hanna senão a expressão possível da mais miserável condição humana? Hanna socorre um menino doente, mas não lhe cabe o atributo da bondade. Hanna condena muitas judias à morte, quando poderia salvá-las de um incêndio com um gesto muito simples: o de abrir uma porta... e nem assim lhe cabe toda a maldade do mundo. Hanna é o nada. Tão frágil como só o nada pode ser, e ao mesmo tempo, senhora de tamanha crueldade que só no mais absoluto vazio há lugar. Qualquer porção de humanidade poderia conferir a ela outro destino. Ela poderia ser outra – no amor de Michael Berg. Amor que o percorre a vida inteira, de tal forma, que a ele Michael teve que sobreviver. É em Michael que existe o conflito: Entre a vida e a morte, ele caminha moribundo.

Hanna, o monstro. Hanna, o bode expiatório. Hanna, a analfabeta. E Hanna, o amor, o amor de Michael. Afinal, quem é Hanna?! Ela é sua própria tragédia. Mas é também a tragédia pessoal de Michael e de outras tantas pessoas a quem conduziu a morte. E por quê? Porque a vida não tinha sentido algum, pelo contrário, era somente o calvário que lhe obrigava a esconder sua ausência de si mesma. Hanna é a loucura, porque não sabendo de si, não pode saber do outro que lhe obriga à convivência. Ela é a presa de todo e qualquer sistema que determina seus atos e existência, desde que, e isso é muito importante, ela não seja desvendada em sua nulidade.

Hanna manda aquelas mulheres à morte sem assinar a sentença, como se conduzir alguém à morte pudesse ser um ato isento de responsabilidade e horror. E depois, anos mais tarde, Hanna não livra a si mesma (junto com as demais carcereiras nazistas) porque para isso precisaria revelar-se em sua vergonha de pária e analfabeta, excluída da ordem simbólica.

E Michael? Quem é ele? Ele é a outra Hanna, a que ela poderia ser. E porque não pôde, condenou-o também. Ele é sua face amorosa, eternamente menino, eternamente possível. Ele é sua redenção, a quem ela recusa e abandona. Uma vez e depois outra.

Michael Berg é o viés do amor. O único capaz de revelar à Hanna uma outra face do mundo e um outra possibilidade para si mesma. Ao melhor exemplo da Bela e a Fera, Michael vem em seu socorro e salvação. Vem pela palavra como doação, pela poesia como investimento do olhar na restauração do corpo de Hanna.

Entretanto, na Alemanha do pós-guerra não havia lugar para a fantasia. Nenhum Walt Disney sobreviveria nos escombros da terra de Hitler. Sob as ruínas da condição humana não há nenhum príncipe ou princesa sob a face da fera. Pelo contrário, nesta história, são as feras-vampiros que detém a habilidade da arte de metamorfosear e que sugam à última gota o sangue da cortesã que se ofereça.

Sem fantasia não há lugar para o amor assim como, sem poesia não pode haver salvação.

Um beijo,
Guilhermina

segunda-feira, 6 de abril de 2009

direito a dor – por Aderbal

Sempre defendi o direito a dor e ao baixo-astral. Não faço, de fato, uma apologia ao sofrimento, porém, quando não se tem motivo para rir, nada pior do que alguém querendo te contar uma piada.

O difícil é convencer o próximo de que a tua dor é legítima e que você precisa dela, assim como ela de você. Acredito sim que dor esvanece, diminui, se transforma. O que não dá é prá sair por aí achando que uma comédia no cinema ou no teatro afastará nossa dor. Não!

O que nos anestesia é um golpe maior de dor. Ao contrário da Comédia, a Tragédia. Assim sendo, fui ver Oidipus Filho de Laios. Mais trágico não havia! Infelizmente, não consegui uma cartase. Ontem já havia tentado com o aluguel do filme "Medos Privados em Lugares Públicos", que de deprê pouco tem, portanto, sem a desejada serventia.

Resta-me hoje ainda, "O Ensaio Sobre a Cegueira" - o filme - torcendo para encontrar nele uma luz!

Dizem que o melhor a fazer, em momentos de tristeza é olhar para baixo, procurando ao redor quem está em situação pior que a nossa. Verdade. Vez por outra funciona. Nem sempre.

Certo mesmo é a relatividade que tem o tempo, tão lento quanto a dor e tão rápido quanto a gargalhada.

Como dor sozinha não vive, ela procria, tento lembrar das filhas de antão. Das outras dores que tive e que acompanhei do nascedouro ao sumidouro, guardo a lembrança da tia Esperança! Esperar para alcançar, fazer para acontecer, sofrer para gozar. Será?

Aderbal

sexta-feira, 3 de abril de 2009

arroz, feijão, alforria e honra


Existe sim, no nosso país, no Estado do Rio,

a criminalização da pobreza e a política de extermínio”

Márcia de O. Jacinto


Do mesmo jeito que a polícia usou a mídia para sujar

o nome de Jean e do Brasil,nós usamos para provar

quem é o brasileiro e quem era Jean”

Alex Pereira


Aquela sexta-feira, já faz uma semana, amanheceu como se fosse treze. Nine me acordou como um despertador, com a notícia no Yahoo sobre o suposto tratamento para reversão da homossexualidade – indicação dos ingleses... Eu provavelmente havia sido abduzida durante o sono e catapultada ao século XIX. Aquilo só podia ser uma mensagem enviada por telégrafo! Meu estômago reclamou o café da manhã, mas eu estava desorientada e era urgente procurar a saída daquele pesadelo. Desci as escadas, cambaleante, duvidando do meu senso de orientação. Mas a xícara estava lá sobre a mesa e ao lado, o jornal. Olhei a data antes de abri-lo só para me certificar de que se tratara de uma brincadeira de mau-gosto, aplicada por algum diabinho perdido àquela hora da manhã. Sim, estava lá: sexta-feira, dia 26 de março de 2009. Seria a Nine, então, que estaria atordoada? Andara sofrendo, magoada com os últimos acontecimentos, e vocês são testemunhas: andou até encontrando ETs... Pobre Nine, pobre Nine!!!! Telefonaria para ela, pensei, provando o café. Explicaria com carinho que essas brincadeiras não tem graça, que vivemos em outra época, que isso aconteceu há muito tempo ou que a internet está cheia de armadilhas. É bom tomar cuidado... Hoje, quase terminando a primeira década do século XXI, homens se casam com homens, assim como as mulheres entre si, adotam crianças, ou as concebem por gestação, tem direitos civis, se comprovada a união estável. Querida, eu lhe diria, é crime a discriminação ao homossexual e já vai mais de quinze anos (1º de janeiro 1993) que a Organização Mundial de Saúde deixou de tratá-los como doentes, reconhecendo assim o equívoco de considerações anteriores.


A essa altura, a primeira xícara de café já terminara e eu já encomendara a segunda. Fresca e fumegante. E abrira o jornal, mesmo sabendo que este é sempre um derradeiro momento matutino, daqueles que a gente define o dia: desespero ou resistência?! O telefonema para Nine ficaria para mais tarde. Lá estava a cobertura completa: prêmio “faz a diferença”. Quatro páginas inteiras, repletas de fotos e histórias. A primeira história era a de Márcia Oliveira Jacinto. Impossível não se comover com uma mãe que perdera seu filho num tiro da polícia. Era dor profunda, daquelas a qual não se sobrevive. Márcia sobreviveu. Para lutar pela honra do nome do filho. Vou repetir: Eu disse honra. Uma zoeira voltou a rondar minha cabeça... Lá ia eu novamente ao túnel do tempo? Não era na Idade Média que a honra merecia um duelo em sua defesa? Pois Márcia duelou contra a depressão, a pobreza, a exclusão, a corrupção, o corporativismo da polícia brasileira... para que não transformassem seu filho, vítima de assassinato cruel e vil, em réu, condenado e executado sem julgamento e sem defesa. Márcia duelou e venceu. Não foi possível conter minha emoção, para que não subisse aos olhos. Chorei por Márcia, por Hanry – seu filho, e por nós. Chorei sem vergonha nenhuma, mesmo sabendo que isso, em nossos dias, é absolutamente desprezível, motivo de chacota.


Depois veio a história do Alex Pereira, primo do Jean Charles de Menezes, aquele brasileiro morto no metrô de Londres. E novamente lá estava mais uma luta pela honra. E contra o abuso dos poderosos. Márcia e Alex nos convocam nesses nossos tempos de impunidade e paralisação? Naquele momento, já com cafeína suficiente no sangue e na mente, eu me perguntei o que mais precisamos perder para que a honra nos provoque também a uma luta que nos revigore o sentido. Márcia e Alex acreditam no valor de seus nomes próprios. E nós acreditamos em que?


***


O que posso desejar a todos é muito arroz, feijão e cinema...

que alimenta a alma das pessoas e fortalece a consciência de um país.

Adailton Medeiros


Ia enveredar na investigação da pergunta que acabara de formular quando o bonde de outrora rangeu nos trilhos novamente, já nas linhas seguintes do jornal: “Cada livro é uma carta de alforria” (Ricardo Ferraz)... “Com os livros já fui várias vezes à Pasárgada, já dei a volta ao mundo em 80 dias” (Otávio Júnior)... Sim, lá estavam os dois – Ricardo e Otávio – mais de um século depois da lei Áurea a nos lembrar que a escravidão resiste na ignorância e na interdição ao sonho, irmão gêmeo da literatura, ambos filhos da arte e da cultura. É verdade, meu caro Visconde, vivemos em terras tão insalubres que nossos herois são aqueles que emprestam letras para os sonhos da gente. São Zumbis dos nossos quilombos, pós tantos anos de república. E a julgar pelos dados que você nos forneceu, meu amigo, não sei por que tememos as tsunamis, ondas que devastam na velocidade de uma mínima fração do tempo. Não é muito pior essa contaminação silenciosa dos lençois freáticos que percorrem todo o subsolo com a ignorância e a amputação da fantasia? Ricardo e Otávio desafiam nossa inércia e nossa inoperância, nossas vidas asseadas pela mesmice. Não distribuem cestas básicas a quem tem pouca comida. Distribuem livros a quem tem fome na alma.


Alforria e honra – dois conceitos de mil oitocentos e alguns anos que insistem à nossa porta como se estivessem acorrentados, por forças terroristas, no meio da mata atlântica... O que fizemos do século XX?

Um beijo,

Guilhermina