querida,
É vívido em mim o tempo em que nos conhecemos. Achávamos que éramos tão parecidas. Gostávamos de coisas semelhantes, conversávamos sem cerimônia, e mesmo alguma diferença de idade não fazia impedimento às confidências, à divisão das angústias, aos relatos das nossas descobertas. Éramos povoadas de certezas: dos caminhos que trilharíamos, do afeto que seria sempre presente, dos momentos que partilharíamos na vida de uma e da outra. E mesmo que alguém nos maldissesse, um saber anterior, sobre o seu caráter e o meu, daria conta de blindar nossos ouvidos e fortalecer o nosso abraço.
Seríamos parceiras no tempo, sócias no espaço, testemunhas da história, confidentes daquelas coisas que não ousamos dividir com ninguém, ou quase ninguém. Confabularíamos só com olhares, sem tradutores nem intérpretes. E não é que foi assim? No meio da roda, fervilhando uma discussão, um comentário que nem lembramos mais de onde vinha, fazia nossos olhos se procurarem como imãs. Às vezes, abaixávamos a cabeça para rir sem “dar bandeira”; outras vezes, apenas registrávamos aquele algo para comentarmos depois.
Algumas pessoas nos chamaram de ingênuas, o que só aumentava nossa convicção de que construíam muros onde fincávamos as estacas da nossa ponte. Outros debochavam: “par de jarros”, “Cosme e Damião”... “siamesas”. Pura inveja — era a nossa resposta silenciosa. Um acordo tácito.
Um dia, sem que soubéssemos exatamente precisar quando, surgiu o primeiro ressentimento. Nada sério, só exatamente como a palavra diz, um sentimento que voltava, que insistia em avisar alguma coisa que a gente não queria ouvir. Não adianta agora perguntar o quê, a resposta talvez nem faça mais sentido. Melhor deixar pra lá, reduzir a alguma circunstância, engavetar. Um pouco mais adiante, outra vez, outro tropeço... A palavra enviesada, o olhar no vácuo, o tom fora de sintonia. Veio a fase dos “papos cabeça”. Aqueles que consomem horas procurando no vocabulário a reparação dos atos desastrados. E como referências não se quebram assim, seguíamos no dia seguinte, tateando no entardecer daquela cumplicidade.
Uma parte a vida anda, o corpo enferruja, o cotidiano se põe nas demandas dos números, das lições, das perdas, das aflições e interesses. Uma parte, as novas associações, casamentos, filhos, mudanças de rumos... Sabe-se lá onde encontrar a culpa das nossas distrações, dos nossos endurecimentos, dos nossos equívocos...
Fato é que nem reparamos que abandonamos também as tentativas de retificações. Não percebemos as infiltrações, as rachaduras, o cheiro de mofo, o silêncio que não era mais entendimento, mas distância.
Se aconteceu alguma coisa? Nada com letra maiúscula, e tantas pequenas desistências que foram virando grandes traições. Possivelmente nem falaríamos de falta de afeto. Provavelmente justificaríamos em “apenas” diferenças entre a necessidade de uma e a disponibilidade de outra. E julgaríamos igualmente sós: compreensível em nós, impedimentos dela.
E se alguém perguntasse, por curiosidade ou por maldade, sobre a ausência da outra, escolheríamos as palavras para dizer que são coisas da vida, sempre muito ocupada, sempre tão difícil, sempre assoberbada. Ainda garantiríamos o coração aberto para a hora que a outra precisar. E seria honesto, seria verdadeiro.
Assim, quando passamos a garantirmo-nos em permanência para o caso de necessidade, ao mesmo tempo em que ensinamos ao desejo a renunciar uma à outra, certificamos ao orgulho sua vitória; à solidão, o triunfo e à pobreza, o reinado sobre a existência. Se a confiança só existe na entrega mútua, o afeto se é mudo, é vão. E sem mãos jardineiras, padece.
A restauração não é o ofício do remendo. Ao contrário, é a arte sobre a arte. Trata-se da dimensão humana do divino e exige sensibilidade, além de destreza técnica, paciência e humildade. Uma arte nobre servil. Uma nova ordem, aspirante de um novo tempo.
Beijo,
Guilhermina
É vívido em mim o tempo em que nos conhecemos. Achávamos que éramos tão parecidas. Gostávamos de coisas semelhantes, conversávamos sem cerimônia, e mesmo alguma diferença de idade não fazia impedimento às confidências, à divisão das angústias, aos relatos das nossas descobertas. Éramos povoadas de certezas: dos caminhos que trilharíamos, do afeto que seria sempre presente, dos momentos que partilharíamos na vida de uma e da outra. E mesmo que alguém nos maldissesse, um saber anterior, sobre o seu caráter e o meu, daria conta de blindar nossos ouvidos e fortalecer o nosso abraço.
Seríamos parceiras no tempo, sócias no espaço, testemunhas da história, confidentes daquelas coisas que não ousamos dividir com ninguém, ou quase ninguém. Confabularíamos só com olhares, sem tradutores nem intérpretes. E não é que foi assim? No meio da roda, fervilhando uma discussão, um comentário que nem lembramos mais de onde vinha, fazia nossos olhos se procurarem como imãs. Às vezes, abaixávamos a cabeça para rir sem “dar bandeira”; outras vezes, apenas registrávamos aquele algo para comentarmos depois.
Algumas pessoas nos chamaram de ingênuas, o que só aumentava nossa convicção de que construíam muros onde fincávamos as estacas da nossa ponte. Outros debochavam: “par de jarros”, “Cosme e Damião”... “siamesas”. Pura inveja — era a nossa resposta silenciosa. Um acordo tácito.
Um dia, sem que soubéssemos exatamente precisar quando, surgiu o primeiro ressentimento. Nada sério, só exatamente como a palavra diz, um sentimento que voltava, que insistia em avisar alguma coisa que a gente não queria ouvir. Não adianta agora perguntar o quê, a resposta talvez nem faça mais sentido. Melhor deixar pra lá, reduzir a alguma circunstância, engavetar. Um pouco mais adiante, outra vez, outro tropeço... A palavra enviesada, o olhar no vácuo, o tom fora de sintonia. Veio a fase dos “papos cabeça”. Aqueles que consomem horas procurando no vocabulário a reparação dos atos desastrados. E como referências não se quebram assim, seguíamos no dia seguinte, tateando no entardecer daquela cumplicidade.
Uma parte a vida anda, o corpo enferruja, o cotidiano se põe nas demandas dos números, das lições, das perdas, das aflições e interesses. Uma parte, as novas associações, casamentos, filhos, mudanças de rumos... Sabe-se lá onde encontrar a culpa das nossas distrações, dos nossos endurecimentos, dos nossos equívocos...
Fato é que nem reparamos que abandonamos também as tentativas de retificações. Não percebemos as infiltrações, as rachaduras, o cheiro de mofo, o silêncio que não era mais entendimento, mas distância.
Se aconteceu alguma coisa? Nada com letra maiúscula, e tantas pequenas desistências que foram virando grandes traições. Possivelmente nem falaríamos de falta de afeto. Provavelmente justificaríamos em “apenas” diferenças entre a necessidade de uma e a disponibilidade de outra. E julgaríamos igualmente sós: compreensível em nós, impedimentos dela.
E se alguém perguntasse, por curiosidade ou por maldade, sobre a ausência da outra, escolheríamos as palavras para dizer que são coisas da vida, sempre muito ocupada, sempre tão difícil, sempre assoberbada. Ainda garantiríamos o coração aberto para a hora que a outra precisar. E seria honesto, seria verdadeiro.
Assim, quando passamos a garantirmo-nos em permanência para o caso de necessidade, ao mesmo tempo em que ensinamos ao desejo a renunciar uma à outra, certificamos ao orgulho sua vitória; à solidão, o triunfo e à pobreza, o reinado sobre a existência. Se a confiança só existe na entrega mútua, o afeto se é mudo, é vão. E sem mãos jardineiras, padece.
A restauração não é o ofício do remendo. Ao contrário, é a arte sobre a arte. Trata-se da dimensão humana do divino e exige sensibilidade, além de destreza técnica, paciência e humildade. Uma arte nobre servil. Uma nova ordem, aspirante de um novo tempo.
Beijo,
Guilhermina
3 comentários:
Desejo
Encontro e desencontro
Arte no viver.
Que depois de experimentada...ah!
Se não a temos não há cheiro,nem sabor,nem tato ou cor.
Nossa, Guilermina, isso é muito lindo...e transcrevo abaixo as suas palavras, como se fosse um mantra para libertar um desejo esquecido ou desaprendido:
"A restauração não é o ofício do remendo. Ao contrário, é a arte sobre a arte. Trata-se da dimensão humana do divino e exige sensibilidade, além de destreza técnica, paciência e humildade. Uma arte nobre servil. Uma nova ordem, aspirante de um novo tempo."
Convido você para partipar do Meme entre bloggers e leitores do Lector in Fabula. Veja lá: http://lectorinfabula.blogspot.com/2009/01/hora-do-recreio-meme-entre-bloggers-e.html
Postar um comentário