Venerável Rainha, minha amada,
Devo-lhe há muito umas linhas (em meu caso, sempre às milhares) sobre antiga postagem tua. Apud a casa em ruínas de nossa Nine, ocorreu-me tocar nesse que é um tema excessivamente abrasivo. Também eu amei loucamente, ao meu jeito. Punk, junk, quiçá. Gravitava em torno daquele turbilhão, tomando-o como a uma droga que, indômita, cancelava os mecanismos da razão. Não é possível alguém viver sob o mesmo teto que uma pessoa, dormir com ela todas as noites e, ainda assim, passar os dias atormentado com a sua falta, contando os minutos para vê-la. As horas não passavam, por não lograr eu ocupá-las com as prerrogativas da inteligência, anuladas sem dó nem piedade por um combustível que queimava, ardia, na fornalha em funcionamento non stop.
Quase não me reconheço agora, algum tempo depois, nessas descrições que mais parecem saídas de uma outra criatura, em cenário medieval. A não haver passado por tudo isso, e lendo este relato, o interpretaria, das duas, uma: ou falaríamos de alguém pertencente a outro século - à guisa do flagelo de Romeu e Julieta em Verona - ou a clamar cuidados especiais na esfera da psi. Ponto para esta última hipótese. Coisa, parece-me, de quem recobrou a consciência. Ou não. Ou nunca.
O fato é que a prosseguir a navegação naquela batida de procela, em ímpares condições de turbulência, os barcos não tardariam a espatifar-se contra as rochas, tal o descontrole da bússola. A excessiva tensão aplicada às cordas de nosso instrumento outro destino não poderia ter senão arrebentá-las. Explodi-las. Enxergava eu com limpidez a ação do implacável ácido desgastando precocemente a estrutura que intentávamos levantar. Mas o que era do miserável eixo real contra a fúria do epicentro do querer? Logo, este teu amigo, como não pensava, não existia. Ela me abraçava e tempo e espaço ficavam em suspensão. A trilha sonora que mais expressava tamanho terremoto vinha, para variar, de Francisco: "Quis saber o que é o desejo, de onde ele vem, fui até o centro da terra, e é mais além".
A paixão tem, por princípio, ser fugaz. Ela roga por finitude, pois, do contrário, o ser esgota-se, consome-se. Mas aquilo que não passava continuou a não passar enquanto estivemos casados e, durante um bom tempo depois, seguiu em sua imperturbável formatação de permanência. Ninguém suporta indefinidamente o governo autocrático de um estado de exceção. Não é da natureza humana. E a união se desfez. Dessa parte, é dispensável ocupar-me: conheces de cor e salteado os desdobramentos, pois foste luz para mim quando tudo era sombra - como esquecer? Os dias no escuro, as noites em claro, em arrastamento perturbador. Tudo se resumia à reunião de forças mínimas capazes de manter em funcionamento a máquina de escrever e de emitir sons. A garantir a sobrevivência. Por várias vezes, ela me procurou e só eu sei - ou melhor - nem eu sei de onde saía a voz para lhe dizer não. É que o processo de cura precisava ser iniciado a qual preço fosse. Impunha-se o freio de arrumação.
Mais tarde, as bençãos do tempo, tempo, tempo, tempo - sempre ele - proporcionaram a acomodação do terreno pós-dilúvio. E foi possível até ensaiar uma improvável volta. Exemplo os há de relacionamentos que findaram e foram retomados mais na frente. Acredito eu que em amores de intensidade mediana - o que quer que isso signifique -, seja ocorrência possível (conquanto achar que ninguém encerra um relacionamento que é bacana). Nós, todavia, fomos tudo, menos um meio termo, um mormaço, um deixa estar, um vir a ser. Para o bem e para o mal. O amor até pode levar, circunstancialmente, desaforo para casa. Mas nem sempre habita uma mansão. E que o universo nos proteja de seus bolorentos e inóspitos subsolos.
O massacrante trator da memória derrotou tal possibilidade de rearranjo. Seu rolo compressor esmagou o frágil broto que teimava em vingar. Seus gritos ensurdeceram a caixa craniana. Suas lágrimas afogaram a centrífuga do desejo. A escuridão apagou o brilho daquele diamante. Um cristal estilhaçado não volta a sua original - e exuberante - condição de peça inteiriça. As infinitesimais partículas espalhadas por todos os cantos não deixam.
Jamais saberei a porção adicional que deixei de ganhar. Mas o que ficou não é pouco, antes ao contrário: ela me deu tudo. Sei o que é uma entrega genuína e absoluta entre duas pessoas. Poucos podem dizer isso. Pois, assim, é com toda a gratidão à vida que declaro esse imensurável patrimônio, esse bem que nenhuma Receita Federal há de sequestrar. Como diz a grande filósofa Ana Carolina - que, a teu lado, amiga, foi uma íntima companhia na região insondável e insone por onde andei -, "há tantos que vivem sem viver um grande amor". É tesouro inalienável. Legado que não se corrompe. Não conheci encontro maior.
Disso tudo, o melhor é o viver, derrubando incansável nossas maiores certezas. E que nos obriga, permanentemente, à vigilância, à revisão, à renovação constante do que tínhamos como líquido e certo. Olhando para trás, nem há com o que me arrepender, posto que praticamente se dava como que uma privação de sentidos, uma fuga ou, quem sabe, um congestionamento, um tumulto deles, vai saber. Há um buraco, sim, por não ter dado à mulher que eu mais amei um certo tipo de realidade que ela tanto pediu. Ansiávamos de tal forma coisas um do outro que simplesmente não podíamos cumprir. Ou, pelo menos, não naquele momento.
Lembremos que paixão vem de pathos. Até hoje, me pergunto se amei loucamente, o que era amor e o que era loucura. Fomos extraordinariamente felizes. E infelizes na mesma proporção. Era o amor mais lindo do mundo. Mas acabou de forma feia, na vala comum dos amores, como se fora o mais banal deles. Às vezes, os extravios são necessários, sim. O que salva é que se trata de fenômeno irrepetível (amor que não se pede, amor que não se mede, não se repete). Portanto, um belo de um alívio. A vida, esta sábia. Era amor sólido demais para que não se desmanchasse no ar.
Sempre teu,
Albuquerque.
Devo-lhe há muito umas linhas (em meu caso, sempre às milhares) sobre antiga postagem tua. Apud a casa em ruínas de nossa Nine, ocorreu-me tocar nesse que é um tema excessivamente abrasivo. Também eu amei loucamente, ao meu jeito. Punk, junk, quiçá. Gravitava em torno daquele turbilhão, tomando-o como a uma droga que, indômita, cancelava os mecanismos da razão. Não é possível alguém viver sob o mesmo teto que uma pessoa, dormir com ela todas as noites e, ainda assim, passar os dias atormentado com a sua falta, contando os minutos para vê-la. As horas não passavam, por não lograr eu ocupá-las com as prerrogativas da inteligência, anuladas sem dó nem piedade por um combustível que queimava, ardia, na fornalha em funcionamento non stop.
Quase não me reconheço agora, algum tempo depois, nessas descrições que mais parecem saídas de uma outra criatura, em cenário medieval. A não haver passado por tudo isso, e lendo este relato, o interpretaria, das duas, uma: ou falaríamos de alguém pertencente a outro século - à guisa do flagelo de Romeu e Julieta em Verona - ou a clamar cuidados especiais na esfera da psi. Ponto para esta última hipótese. Coisa, parece-me, de quem recobrou a consciência. Ou não. Ou nunca.
O fato é que a prosseguir a navegação naquela batida de procela, em ímpares condições de turbulência, os barcos não tardariam a espatifar-se contra as rochas, tal o descontrole da bússola. A excessiva tensão aplicada às cordas de nosso instrumento outro destino não poderia ter senão arrebentá-las. Explodi-las. Enxergava eu com limpidez a ação do implacável ácido desgastando precocemente a estrutura que intentávamos levantar. Mas o que era do miserável eixo real contra a fúria do epicentro do querer? Logo, este teu amigo, como não pensava, não existia. Ela me abraçava e tempo e espaço ficavam em suspensão. A trilha sonora que mais expressava tamanho terremoto vinha, para variar, de Francisco: "Quis saber o que é o desejo, de onde ele vem, fui até o centro da terra, e é mais além".
A paixão tem, por princípio, ser fugaz. Ela roga por finitude, pois, do contrário, o ser esgota-se, consome-se. Mas aquilo que não passava continuou a não passar enquanto estivemos casados e, durante um bom tempo depois, seguiu em sua imperturbável formatação de permanência. Ninguém suporta indefinidamente o governo autocrático de um estado de exceção. Não é da natureza humana. E a união se desfez. Dessa parte, é dispensável ocupar-me: conheces de cor e salteado os desdobramentos, pois foste luz para mim quando tudo era sombra - como esquecer? Os dias no escuro, as noites em claro, em arrastamento perturbador. Tudo se resumia à reunião de forças mínimas capazes de manter em funcionamento a máquina de escrever e de emitir sons. A garantir a sobrevivência. Por várias vezes, ela me procurou e só eu sei - ou melhor - nem eu sei de onde saía a voz para lhe dizer não. É que o processo de cura precisava ser iniciado a qual preço fosse. Impunha-se o freio de arrumação.
Mais tarde, as bençãos do tempo, tempo, tempo, tempo - sempre ele - proporcionaram a acomodação do terreno pós-dilúvio. E foi possível até ensaiar uma improvável volta. Exemplo os há de relacionamentos que findaram e foram retomados mais na frente. Acredito eu que em amores de intensidade mediana - o que quer que isso signifique -, seja ocorrência possível (conquanto achar que ninguém encerra um relacionamento que é bacana). Nós, todavia, fomos tudo, menos um meio termo, um mormaço, um deixa estar, um vir a ser. Para o bem e para o mal. O amor até pode levar, circunstancialmente, desaforo para casa. Mas nem sempre habita uma mansão. E que o universo nos proteja de seus bolorentos e inóspitos subsolos.
O massacrante trator da memória derrotou tal possibilidade de rearranjo. Seu rolo compressor esmagou o frágil broto que teimava em vingar. Seus gritos ensurdeceram a caixa craniana. Suas lágrimas afogaram a centrífuga do desejo. A escuridão apagou o brilho daquele diamante. Um cristal estilhaçado não volta a sua original - e exuberante - condição de peça inteiriça. As infinitesimais partículas espalhadas por todos os cantos não deixam.
Jamais saberei a porção adicional que deixei de ganhar. Mas o que ficou não é pouco, antes ao contrário: ela me deu tudo. Sei o que é uma entrega genuína e absoluta entre duas pessoas. Poucos podem dizer isso. Pois, assim, é com toda a gratidão à vida que declaro esse imensurável patrimônio, esse bem que nenhuma Receita Federal há de sequestrar. Como diz a grande filósofa Ana Carolina - que, a teu lado, amiga, foi uma íntima companhia na região insondável e insone por onde andei -, "há tantos que vivem sem viver um grande amor". É tesouro inalienável. Legado que não se corrompe. Não conheci encontro maior.
Disso tudo, o melhor é o viver, derrubando incansável nossas maiores certezas. E que nos obriga, permanentemente, à vigilância, à revisão, à renovação constante do que tínhamos como líquido e certo. Olhando para trás, nem há com o que me arrepender, posto que praticamente se dava como que uma privação de sentidos, uma fuga ou, quem sabe, um congestionamento, um tumulto deles, vai saber. Há um buraco, sim, por não ter dado à mulher que eu mais amei um certo tipo de realidade que ela tanto pediu. Ansiávamos de tal forma coisas um do outro que simplesmente não podíamos cumprir. Ou, pelo menos, não naquele momento.
Lembremos que paixão vem de pathos. Até hoje, me pergunto se amei loucamente, o que era amor e o que era loucura. Fomos extraordinariamente felizes. E infelizes na mesma proporção. Era o amor mais lindo do mundo. Mas acabou de forma feia, na vala comum dos amores, como se fora o mais banal deles. Às vezes, os extravios são necessários, sim. O que salva é que se trata de fenômeno irrepetível (amor que não se pede, amor que não se mede, não se repete). Portanto, um belo de um alívio. A vida, esta sábia. Era amor sólido demais para que não se desmanchasse no ar.
Sempre teu,
Albuquerque.
2 comentários:
Querido Visconde ,amor demais ja o tive tambem ,tantas alegrias que as vezes me fazem sorrir ainda hoje para depois chorar.Foi amor imenso ,paixao arrebatadora como a sua e que acabou em clichet feio e sordido.Agora espero me curar o mais rapido possivel com outro amor.So que mais tranquilo ,que seja grande ,mas me traga paz!Que meu corpo e minha alma saibam quando o encontrar que esta em casa.beijos solidarios mon gentilhomme!Rainha ,sua corte é um alento para minha alma,saudades de vossa majestade. E AVE Francisco!
Sim, sim, caros Visconde e Guilhermina: é um privilégio concedido a poucos, a vivência do Grande Amor. Destes que não são (só) de folhetim, embora também possam ser, posto que nada há que não sejam, desses que por vezes nos fazem pensar que o maior objetivo de termos vindo dar com os costados por estas paragens foi propiciar o encontro, desses que - depois de um momento de intimidade plena - pensamos: se morresse neste momento, morreria feliz. É isso e tanto o mais, que vocês foram imensos em descrever.
Abraços meus
Postar um comentário