quarta-feira, 8 de abril de 2009

Hanna e a outra Hanna


Eu e essa triste mania de andar um passo atrás do tempo. Admiro um bocado essas pessoas que estão sempre antenadas e em dia com o que está acontecendo: são as primeiras a verem os filmes que acabaram de entrar em circuito, já leram até o que eu achava que estava no prelo. Viram todas as peças de teatro em cartaz... e descobriram aquela nova música que quase ninguém conhece ainda. Eu estou sempre esperando que passe o frisson, que mais ninguém esteja prestando atenção naquele título e que a assessoria de imprensa dê por encerrado seu trabalho de lançamento do produto. Aí é que vou procurá-lo. Aí é que vou investigar meu interesse por ele... Por isso mesmo, não sou uma boa conselheira de tendências, nem do restaurante da moda, nem do que vem para as vitrines na próxima estação. Eu sempre preciso de silêncio para ver ou escutar o que quer que seja... O burburinho, os mil comentários sobre o mesmo assunto me atordoam. Não foi diferente com o filme “O Leitor”. Só o vi nesta última semana...

E, quanta emoção!

Nem vou discursar sobre o trabalho de Kate Winslet. Todo mundo já falou sobre tanta dureza em tamanha fragilidade...

O que poucas vezes vi foi o amor encontrar história tão triste. Uma história em que ninguém se salva, mesmo que ele (o amor) resista o tempo todo. Quem é Hanna senão a expressão possível da mais miserável condição humana? Hanna socorre um menino doente, mas não lhe cabe o atributo da bondade. Hanna condena muitas judias à morte, quando poderia salvá-las de um incêndio com um gesto muito simples: o de abrir uma porta... e nem assim lhe cabe toda a maldade do mundo. Hanna é o nada. Tão frágil como só o nada pode ser, e ao mesmo tempo, senhora de tamanha crueldade que só no mais absoluto vazio há lugar. Qualquer porção de humanidade poderia conferir a ela outro destino. Ela poderia ser outra – no amor de Michael Berg. Amor que o percorre a vida inteira, de tal forma, que a ele Michael teve que sobreviver. É em Michael que existe o conflito: Entre a vida e a morte, ele caminha moribundo.

Hanna, o monstro. Hanna, o bode expiatório. Hanna, a analfabeta. E Hanna, o amor, o amor de Michael. Afinal, quem é Hanna?! Ela é sua própria tragédia. Mas é também a tragédia pessoal de Michael e de outras tantas pessoas a quem conduziu a morte. E por quê? Porque a vida não tinha sentido algum, pelo contrário, era somente o calvário que lhe obrigava a esconder sua ausência de si mesma. Hanna é a loucura, porque não sabendo de si, não pode saber do outro que lhe obriga à convivência. Ela é a presa de todo e qualquer sistema que determina seus atos e existência, desde que, e isso é muito importante, ela não seja desvendada em sua nulidade.

Hanna manda aquelas mulheres à morte sem assinar a sentença, como se conduzir alguém à morte pudesse ser um ato isento de responsabilidade e horror. E depois, anos mais tarde, Hanna não livra a si mesma (junto com as demais carcereiras nazistas) porque para isso precisaria revelar-se em sua vergonha de pária e analfabeta, excluída da ordem simbólica.

E Michael? Quem é ele? Ele é a outra Hanna, a que ela poderia ser. E porque não pôde, condenou-o também. Ele é sua face amorosa, eternamente menino, eternamente possível. Ele é sua redenção, a quem ela recusa e abandona. Uma vez e depois outra.

Michael Berg é o viés do amor. O único capaz de revelar à Hanna uma outra face do mundo e um outra possibilidade para si mesma. Ao melhor exemplo da Bela e a Fera, Michael vem em seu socorro e salvação. Vem pela palavra como doação, pela poesia como investimento do olhar na restauração do corpo de Hanna.

Entretanto, na Alemanha do pós-guerra não havia lugar para a fantasia. Nenhum Walt Disney sobreviveria nos escombros da terra de Hitler. Sob as ruínas da condição humana não há nenhum príncipe ou princesa sob a face da fera. Pelo contrário, nesta história, são as feras-vampiros que detém a habilidade da arte de metamorfosear e que sugam à última gota o sangue da cortesã que se ofereça.

Sem fantasia não há lugar para o amor assim como, sem poesia não pode haver salvação.

Um beijo,
Guilhermina

3 comentários:

Nine de Azevedo disse...

OI Querida Rainha
Vi "O leitor" e sai do cinema incomodada com a estoria de Hanna ha uns 2 meses atras.Voce agora traduziu tao bem o que senti ,que ouso dizer que que és uma tradutora de almas ,enqto eu ,sou so de palavras.O que mais gostei no texto foram as ultimas palavras sobre fantasia ,amor e poesia: condiçoes sine qua non para viver com sanidade!bjs afetuosos

Renato Alt disse...

"Sem poesia não pode haver salvação".

Assisti há algum tempo a "O Leitor" e foi um filme que me surpreendeu pela isenção, coisa difícil de conseguir em uma obra com esse tema...

Sua resenha é tão melhor do que as que li, escritas "por profissionais"! Daqui a pouco vou começar a sugerir filmes para você dissecar! ;-)

Beijos!

Susanna Lima disse...

Se servir de consolo, ou joelheira, ainda não assisti a esses filmes todos em cartaz...

Concordo com o Renato e Nine! Ótima resenha escrita por uma tradutora de almas... Linda a forma!

Meu beijo!