Elsa, personagem de Patrícia Gasppar, chega, depois de 12 horas ao volante numa odisséia pelo deserto, à casa de Helen (Cleyde Yáconis). Veio nos carregando na boleia até ali. Elsa entra, exausta e irritadíssima, naquela intimidade só das duas. Nós ficamos no muro da casa, um muro de cactos, através do qual podemos ver aquela arte do horror. É dali que a platéia assiste àquela noite de encontro e definição. Em jogo: a vida de Helen. Mas de que vale uma vida africana, aos setenta e poucos anos, reclusa desde a viuvez, desleixada e sem banho? De que vale, aliás, uma vida do deserto sul-africano? Melhor ainda, de que vale a vida? Adianto: nem a própria Helen vê muito valor nisso... a não ser por seu caminho para Meca. Para a sua Meca, caminho que vai pelo Leste.
E o que nos mantém ali, debruçados nos espinhos dos cactos, a escutar a conversa alheia? Desta vez é Helen quem nos adianta. Helen e Cleyde: todo o dia é recomeço. Para qualquer um, em qualquer lugar, todo dia é dia de por os monstros para fora. Eles são feitos de cimento e cacos de vidro, moram em qualquer lugar onde haja vida, qualquer vida. E são enormes!! Desarrumam nossas casas até ganharem o jardim, primitivos e disformes, ávidos por engolir tudo o que nos vai por dentro. São insaciáveis como lombrigas a ocuparem nossas vísceras. Fétidos e distorcidos, na missão de aderirem seus tentáculos até a imobilidade de cada órgão. Visam à nossa necrose e ao nosso colapso. É preciso, é urgente que os deixemos sair posto que anseiam assombrar-nos em nossos próprios jardins.
A céu aberto, livre dos confinamentos que nossos corpos oferecem, sob a abóbada universal eles se expandem até suas dimensões mais exatas. É lá que encontram o ponto de transmutação, a transcendência. Assim, erigidos majestosamente nos jardins dos nossos desertos é que viram anjos... E apontam para o Leste. O caminho possível da liberdade.
Helen, quer dizer Cleyde; as duas; uma no corpo da outra sem que se possa distingui-las, sem que se determine quem é quem, elas nos conduzem da porta trancada à porta do jardim, atravessando o muro de cactos.
Ali, no teatro III do CCBB, no chão de cimento, Cleyde Yáconis é o próprio anjo-demônio. Inteira e enorme de silêncios e de um olhar, que se não for capaz de caminhar até a sua alma e destrancá-la, nada será. Aos 85 anos, ela incorpora uma Helen quinze ou dez (que diferença faz!) anos mais jovem, demônio, anjo e missionária, na determinação de que atravessemos aquele deserto em processo de decomposição pessoal, até o ponto de reversão, onde se pode ganhar a si mesmo. Impossível não desfazer o nó da garganta ao vislumbrar nela uma outra dimensão para si.
Eu agradeço à Elsa por me conduzir soprando e esbravejando o texto de Athol Furgard, pelo qual se chega à Cleyde-Helen, a única capaz de oferecer ao meu anjo-demônio um caminho para minha Meca.
Beijo,
Guilhermina
Guilhermina
2 comentários:
Querida Rainha
Voce nos faz querer ver a peça...seu comentario nos aproximam do personagem de maneira marcante,obrigado! bjs ja saudosos...
Rainha, mas que lindo o seu olhar sobre esse espetáculo!
Adorei o seu 2º parágrafo...
Pena é que me falte tempo para dar-me a esses 'luxos', que deveriam ser, junto com o almoço e o jantar, parte imprescindível do dia.
Meus beijos, querida!
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