terça-feira, 14 de abril de 2009

nós - muito mais do que eu e eu

O poeta mandou a letra. Ela colocou a música.O encontro estava marcado: dia de ela apresentar-lhe a nova parceria. Cantou até o fim. Ele, em silêncio. Ela cantou mais uma vez e só então ele falou: O estranho é que eu vejo a mesma imagem (que eu escrevi), mas parece que é de outro ponto de vista.

Tenho adoração pelo direito inviolável de todo e qualquer um olhar a mesma coisa, direção, ou seja lá o que for, e vê-lo no singular do seu ponto de vista. Aquele que lhe é conferido pelo seu arsenal de possibilidade, que se debruça sobre um ponto externo, mas só ganha existência na retina que lhe é própria. E única. Nada é inteiramente seu, meu ou de terceiros. Apenas a parte que lhe cabe pela sua condição de reconhecê-la a partir do que suporta e anseia. Cada coisa só existe pelo sentido que ganha de você, de mim ou de quem a vê. O que lhe é banal pode me parecer lindo, ou ainda imprescindível; assim como o que me é maravilhoso pode lhe ser absolutamente indiferente.

Se lhe profiro uma verdade qualquer (que só pode ser a minha) é inteiramente seu o dom de fazê-la plena de sentido ou impregnada de tantas reticências que sequer mereça seu crédito. É, cada vez mais, esse lugar a posteriori que me fascina. Este que é o outro que emprega valor ao que quer que seja feito, dito ou realizado. Sim, estou cada vez mais convencida de que a arte (e, portanto, a existência) se faz no ouvinte, no expectador, na resposta causada.

Quanto mais acostumados ficamos à cultura do “eu, por mim mesmo”, “eu que me basto”... mais caminhamos na direção da nossa nulidade e encerramento. O que esta política do individual nos rouba, enquanto nos quantifica com os números do resultado, é nossa qualidade humana, dotada de desejo, falta e nome próprio.

Quando a palavra daquele poeta ganha para ele um outro sentido, nos acordes que lhe destinam a cumplicidade da parceria, ele, antes autor, é obrigado a ouvir a si mesmo de novo, no deslumbre do encontro com o outro. Naquele “nós”, seu pertencimento se revigora num entrelace onde a poesia vira música. No compartilhamento da co-autoria, as palavras, antes suas, ganharam um estranhamento que o obrigou a indagar-se o que foi que eu disse?

Nada assim tão incomum. É no efeito do que dizemos ao outro, efeito que pode ser de aceitação ou recusa, que somos obrigados à renovação pelo benefício do encontro possível.

Ou não. Também é uma escolha, e como tal legítima, a ratificação daquele primeiro conteúdo e forma, sem destinar-lhe retoque ou lapidação... e o encontro que se dane. Entretanto, vale saber: a solidão é um direito inalienável e uma condição inerente à existência, mas distinta da sozinhez – esta, apenas um eu embriagado.

Beijo,
Guilhermina

6 comentários:

Maria disse...

Guilhermina, esse é um daqueles textos que quando terminamos de ler, de tamanha completude, não sabemos o que dizer!

Pois bem, ao dizer que 'a arte se faz o ouvinte', você traduziu algo que também penso. Acho que a réplica é que enriquece, que faz o texto, ou a pintura, ou o que quer que seja. E, lógico, tudo retorna pelos olhos de outros, o que implica no imprivisível, no não poder controlar o que irão pensar, sentir ou ver. Acho isso riquíssimo, mas o imprevisível surpreende, em todos os sentidos, então é preciso estar preparado. (E alguém pode se preparar para o imprevisível?).

A escolha de não aceitar outras visões é egoísmo, e embora seja uma escolha particular, empobrece, e tira a liberdade legítima da arte. Façamos nossa escolha!

Meu beijo, querida Guilhermina.

Susanna Lima disse...

Guilhermina, esse texto falou tanto... Acho que ultrapassou as palavras que você escolheu como enfeites para as idéias.

Fiquei sus-pensa, em literal!

Muito em que pensar. Muito a sentir... Hei de apurar meus sentidos!

Meus, de sempre, carinhos!

Unknown disse...

Guilhe,
E se tudo o que somos,sentimos, e pensamos só existir em função do outro?
Assim como os átomos,moléculas e partículas que só existem pela junção de forças que os mantém em permanente relação, não seríamos nós o resultado de uma equação onde o outro é A letra fundamental para nos transformar?
Caramba... e se?

Visconde disse...

Sozinhez??? Esta é a minha amiga Guilhermina!

Nine de Azevedo disse...

AH amada Rainha sou de cismar ,conversar com meus botoes etc.. desde menina! Apos ler o seu texto vim para ca pensando: escrevo ou nao escrevo o que estou pensando?...ai li o que a Eduarda escreveu e vi que ela chegou na frente e pensou igual.Tb fui até o:_ e se?Ah nem a pau juvenal!Depois vao dizer que eu nao saio do canal scifi.Bjs para todos

Renato Alt disse...

Nossa...
Esse texto dá material para tantas, tantas conjecturações... lembrou-me as questões levantadas em dois filmes, que recomendo: "Quem Somos Nós" e "Huckabees".

A realidade é absoluta ou é conforme a definimos?

Muito a pensar... texto realmente instigante.

Beijos...